Mentiras e verdades sobre o 1º de abril de 1964

Muito aspectos do regime militar podem ser interpretados por parâmetros pessoais. As análises, porém, devem ser sedimentadas em fatos e evidências, não em fantasias

Presidente Jair Bolsonaro - Foto Orlando Brito

A ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República revolveu o passado próximo brasiliano. Defensor incontido do período de 21 anos em que os militares mandaram (mais do que nunca) no País, o capitão-mor trouxe à tona uma interpretação da história que parecia restrita aos quartéis.

De acordo com este viés, a queda do presidente João Goulart, em 1964, não foi golpe. Além disso, tanto Bolsonaro quanto a trupe emergente de civis entendem que aquele período foi benéfico para o Brasil, pois teria evitado a implantação do comunismo e trazido prosperidade.

O segundo ponto de vista carrega grau de subjetividade e provoca defesas e contestações. O primeiro não resiste às evidências.

(Parte da chamada esquerda não reconhece Getúlio Vargas como ditador. Afinal, ele implantou a proteção legal aos trabalhadores e trouxe prosperidade. Trata-se do mesmo tipo de proteção ideológica do mito.)

Foto Orlando Brito

A rigor, a defesa do período de preeminência militar, para usar expressão do historiador Daniel Aarão, independe se houve ou não golpe. Mas na simplificação predominante nas redes sociais é o que importa.

Nelas, debates não há. O Brasil radicalizado do século XXI ensurdeceu ouvidos e transformou bocas em alto-falantes. Todos têm certezas, ninguém tem dúvidas.

O Brasil radicalizado do século XXI
ensurdeceu ouvidos e transformou bocas em alto-falantes.
Todos têm certezas, ninguém tem dúvidas“.

Interpretações distintas de um mesmo fato pode haver. Mas fatos seguem evidências e descrições históricas. Define-se os segundos, debate-se os primeiros.

De positivo, as provocações do capitão-mor servem para despertar curiosidade à maioria da população que não presenciou ou não se interessou em estudar o período entre 1964 e 1985 (quando um civil voltou a governar o Brasil). Estudá-lo e formar suas próprias convicções não é revolver o passado, mas desvendar o presente.

Afinal, o Brasil não seria o que é não fossem aquelas duas décadas. Esta, talvez, das poucas interpretações que não devem provocar controvérsia.

Àqueles que se expõem ao debate e aos que pouco conhecem dos idos de 1964, eis alguns fatos.

Foi golpe. O período que antecedeu a deposição de João Goulart era socialmente conturbado e institucionalmente instável. Porém, Jango, como era conhecido, era presidente constituído, foi deposto sem acusação formal e pela força das armas. Na sequência, surgiu um regime que submeteu os poderes Legislativo e Judiciário à vontade dos militares. Portanto, foi golpe de Estado capitaneado pelas Forças Armadas. Nada de incomum na história republicana brasiliana.

Dilma Rousseff – Foto Orlando Brito

Não foi golpe. O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, serve como contraponto. Este seguiu todos os trâmites constitucionais: teve amplíssima maioria na Câmara e no Senado, a chancela unânime da Suprema Corte e maciço apoio popular. Ela foi acusada, se defendeu, não convenceu e foi condenada. Apesar da chiadeira da chamada esquerda, a imprensa nativa e de além-mares cobriu com absoluta liberdade os 9 meses do processo de impedimento.

Bagunça econômica. Em comum, tanto 1964 como 2016 padeciam com uma economia desajustada. Cidadãos sem renda (desemprego) e sem poder de compra (inflação alta) são mais propensos a apoiar a destituição de mandatários da vez.

Apoio civil. Em que pese a divisão acirrada entre as forças políticas do País, houve respaldo popular e civil ao golpe. Parte majoritária do establishment aliou-se aos golpistas. Logo, é possível falar em golpe civil-militar.

Ditadura militar. A derrubada autoritária do presidente seria um golpe, e não o início dum regime militar, se, pouco depois, eleições gerais e livres tivessem sido convocadas. Não foram. Os generais decidiram ficar no poder sem que houvesse o devido processo legal. Logo, Tamanco, Português, Milito, Alemão e Figa, as alcunhas dos 5 presidentes do regime militar, como descritos pelo jornalista Elio Gaspari, não foram presidentes eleitos, mas ditadores. A força da influência civil ainda precisa ser dimensionada, mas a decisão final era dos generais. Portanto, eles mandavam e desmandavam. Havia a desordem dos porões da ditadura, mas isto é outra história.

As bandeiras estendidas sobre a lápide de mármore e o clima fúnebre do Congresso fechado pelo AI-5. Foto Orlando Brito

Tortura institucional. A repressão política não é ficção. Houve tortura, banimentos e assassinatos. Ser oposição diante dos milicos de plantão era muito arriscado. Os generais toleravam uma oposição comportada e com endereço fixo. No entanto, mesmo esta foi amordaçada com atos arbitrários, como o AI-5, o fechamento do Congresso Nacional e censura à imprensa.

Terrorismo de esquerda. Parte da oposição ao regime militar não era democrática. Declaradamente, mesmo antes do golpe de 1964, pretendia tomar o poder à força e implantar um Estado de exceção. Como modelos, as ditaduras cubana e soviética. A oposição radicalizada adotou a violência (com assassinatos) como método de luta política. Além disso, nos turbulentos tempos que antecederam março de 1964, era corrente na esquerda que o golpe viria de qualquer jeito. “Volto certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei”, avisou o astuto governador de Pernambuco, Miguel Arraes, ícone das fileiras da sinistra.

Milagre econômico. Sim, os militares deram um impulso à economia, que cresceu, por um período da década de 1970, a índices chineses. Mas deixaram como herança a economia bagunçada. Os militares tinham pensamento bastante semelhante ao petismo: nacionalistas, estatizantes e intervencionistas. Receberam e entregaram o País numa balbúrdia econômica. Semelhante aos 13 anos do petismo – que, não obstante, foram herdeiros do bem-sucedido Plano Real. Ressalva óbvia: a anarquia econômica gerada pelo PT foi resultado da escolha dos eleitores.

João Goulart

1º de abril. A deposição de Jango não ocorreu no dia 31 de março, mas 1º de abril – portanto, o dia do golpe. Talvez o gesto mais emblemático da deposição à força aconteceu há 55 anos. Naquele 1º de abril, o comandante do II Exército, Amaury Kruel, que chefiava as tropas sediadas em São Paulo, desistiu de esperar um gesto de seu amigo Jango que garantisse o apoio do general à legalidade. Entre tantas evidências, a frase do general Oswaldo Cordeiro de Farias, velho conspirador, é taxativa: “A verdade – é triste dizer – é que o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º [de abril]”.

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