Em circunstâncias diferentes, Jair Bolsonaro caminha celeremente para a encruzilhada em que Fernando Collor e Dilma Rousseff optaram por caminhos errados e perderam seus mandatos. Collor chegou a essa situação, depois de uma meteórica ascensão política como paladino da moralidade, ao tropeçar feio na própria corrupção. Dilma pela ilusão com as seguidas fantasias criadas por João Santana, em que desfilou como faxineira e viveu o papel de fada madrinha em sua reeleição, tendo que se despir de todas elas ao começar o seu segundo mandato. Ambos buscaram alguma salvação vendendo a alma ao diabo. Apelaram para as forças políticas que então encarnavam o Centrão. Agradecido pelas prendas, eles deram a extrema unção para Collor e Dilma.
Canela é bola no jogo político. Por mais que dessem pretextos em seus mandatos, Collor e Dilma caíram pelo acúmulo de vícios do passado. Collor levou para o governo federal o esquema provinciano de corrupção montado por PC Farias em Alagoas. Dilma teve que pagar a conta da máquina petista de corrupção, que bancou a sua eleição e reeleição. São dimensões diferentes, mas aos olhos da população e da legislação malfeitos igualmente puníveis.
Fernando Collor foi um aventureiro solitário. Dilma herdou, no segundo mandato a contragosto, as bençãos de Lula. Com certeza, até mais que Getúlio Vargas, Lula foi o mais querido líder popular da nossa história. Jogou fora esse papel histórico ao dar aval ao maior esquema de corrupção descoberto no país — com certeza, um dos maiores do planeta. Mesmo assim, mantém um grande número de devotos, que se recusam a enxergar a sua responsabilidade nas roubalheiras, que fartaram até a gula do Centrão, nos governos petistas.
Jair Bolsonaro é refém do próprio passado. Como tenente se tornou líder de um movimento para aumentar os salários dos oficiais militares. Foi punido e transferido para a reserva como capitão. A solidariedade dos colegas o elegeu vereador no Rio de Janeiro. A partir daí conseguiu uma ascensão política, em que elegeu sua então mulher e os filhos, criando uma verdadeira oligarquia. Como era uma figura algo apagada na política, cresceu sem chamar muita atenção. A conta chegou tarde. A rachadinha com os salários de funcionários de todos os que tinham mandatos políticos no clã familiar, com epicentro no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, até hoje é um caso aberto. O tal sargento Fabrício Queiroz, personagem central dessa história, simplesmente saiu de cena. E daí? Daí, até agora nada.
Nesse mesmo carretel, apareceu uma linha que levava às milícias, hoje o maior poder paralelo no Rio de Janeiro. A família do capitão Adriano Magalhães da Nóbrega batia ponto ou apenas recebia salário no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia. De acordo com investigações da própria polícia, o capitão chefiava uma das maiores milícias do Rio e um tal Escritório do Crime, que, entre outras barbaridades, teria matado a vereadora Marielle Franco. Adriano morreu na Bahia acusado de resistir a um cerco da polícia baiana, em uma operação contestada, com veemência pelo presidente e por seu filho Flávio, agora senador.
Informes que chegaram a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge e ao ex-ministro Raul Jungmann acenderam um alerta de que as investigações do assassinato de Marielle estavam virando um nó cego. Numa tentativa de desatar, a Polícia Federal foi convocada para investigar as investigações. Raquel e Jungmann, enquanto estavam nos cargos, apostavam que estava bem próximo as revelações sobre os mandantes. O fato é que não apostaram certo ou algo deu errado depois que saíram. O nó ainda não foi desatado.
Quem se der a pachorra de ler atentamente tudo o que a imprensa publicou ano passado vai notar que, mesmo aos trancos e barrancos, o avanço das investigações sobre a rachadinha e as milícias coincidem com a pressão cada vez maior de Bolsonaro para indicar o superintendente da PF no Rio de Janeiro. A ponto de por na roda Sérgio Moro, talvez o maior trunfo de seu governo. Ele até chegou a rifá-lo no contexto de um acordão com os outros poderes, em que avaliou que um acerto com Rodrigo Maia e Dias Toffoli, com as bençãos de Gilmar Mendes, criaria uma rede proteção para sua família. A interpretação entre delegados e procuradores que estão na linha de frente da batalha contra a corrupção, é que, em todos esses movimentos, Bolsonaro nunca perdeu o foco de ter alguém da confiança de sua família no comando da PF no Rio de Janeiro.
Em seu depoimento, Sérgio Moro descreve o histórico dessas pressões de Bolsonaro. O presidente, agora com um diretor da PF que, mesmo não sendo o preferido de seu clã, foi indicado como seu homem de confiança e abriu a vaga no comando da PF no Rio — na clássica manobra de cair para cima –, vai ter que mostrar seu jogo. Está todo o mundo de olho. Não apenas nos próximos lances. Seus movimentos até aqui também estão sendo investigados no inquérito sob o comando do decano Celso de Mello.
Os ministros militares que o cercam no Palácio do Planalto foram chamados a depor. Segundo Moro, eles são testemunhas da obsessão de Bolsonaro em indevidamente intervir na Polícia Federal. Para eles, será uma bola dividida. Mas a prova dos nove é a informação do ex-ministro da Justiça de que, em reunião ministerial no dia 22 de abril, Jair Bolsonaro rasgou o verbo e ameaçou, caso não conseguisse por alguém de sua confiança na chefia da PF no Rio, com quem pudesse interagir, demitiria o então diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, e o próprio Sérgio Moro. Nessa reunião, o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete Institucional, órgão encarregado de abastecer com informes de inteligência o presidente da República, teria dito que não há base legal para a PF fornecer os relatórios cobrados por Bolsonaro.
Tudo isso estaria gravado em vídeo pelo Palácio do Planalto. Por seus potencial explosivo, os investigadores temem que isso simplesmente desapareça. Para evitar que isso ocorra, na noite dessa terça-feira, Celso de Mello expediu uma ordem explícita: “”As autoridades destinatárias de tais ofícios deverão preservar a integridade do conteúdo de referida gravação ambiental (com sinais de áudio e de vídeo), em ordem a impedir que os elementos nela contidos possam ser alterados, modificados ou, até mesmo, suprimidos, eis que mencionada gravação constitui material probatório destinado a instruir, a pedido do Senhor Procurador-Geral da República, procedimento de natureza criminal”.
O cerco está se fechando. A exemplo de Collor e de Dilma, quanto mais a corda aperta, Bolsonaro, que vê frustradas suas tentativas de arrastar as Forças Armadas para uma aventura contra a democracia, se refugia nos braços do Centrão. Esse conforto imediato costuma, depois de saciado o apetite da turma, durar pouco.
A conferir.