“Os fatos e os acontecimentos são coisas infinitamente mais frágeis do que os axiomas, as descobertas e as teorias – mesmo as mais loucamente especulativas – produzidas pelo espírito humano”. A observação pungente de Hannah Arendt em seu ensaio “Verdades e Mentiras”, uma resposta à polêmica – não necessariamente elegante ou honesta – sobre o seu clássico “Eichmann em Jerusalém” – não se dissipou na aura gasosa do fazer e pensar a política ocidental, mesmo após a derrota do nazismo e do fascismo na década de 40 do século XX.
Ao contrário, a farsa e a mentira nunca se fizeram tão presentes como nesses tempos de fake news e expressões suntuosas de sentimentos rasteiros. De certa forma disseminada, com inovações, mundo afora, a inverdade na gestão da coisa pública teve agravantes temerários na última década no Brasil, com destaque para a nossa crescente desconstrução institucional na era Bolsonaro. Os exemplos são diversos, mas dois merecem destaque especial pelo grande dano que causarão à precária cidadania dos brasileiros.
O primeiro foi a reforma da Previdência que ceifou das futuras gerações o mínimo de segurança e qualidade de vida quando chegarem ao estágio não laboral, destruindo uma das mais importantes conquistas oferecidas ao País pela Constituição de 1989. O segundo é a Reforma Administrativa, em tramitação no Congresso Nacional. Sob o pretexto de diminuir o “gasto público”, valorizar os “bons funcionários públicos” e corrigir distorções e privilégios, os arautos da reforma, com destaque para o ministro Paulo Gudes, gritam aos quartos ventos que os servidores ganham muito, não trabalham e vivem de vantagens indevidas. “São parasitas que se aproveitam do Estado, o hospedeiro”, sentenciou o falante ministro da Economia.
Os números e os fatos desmentem o já pouco acreditado Paulo Guedes e seus porta-vozes na mídia e alhures. De saída, o número de servidores públicos no Brasil é proporcionalmente menor do que na maioria dos países da OCDE e dos Estados Unidos. No Reino Unido, por exemplo, dados de 2017, 16% da mão de obra ativa era de servidores públicos e nos EUA 15%. No Brasil, no mesmo período, 12.1%. Nos países da OCDE esse número sobe para 18%.
Em relação ao gasto público, na sequência dos números anteriores, a realidade é bem diferente. Em 2019, gastamos 13,7% do PIB com salários dos servidores públicos federais, estaduais e municipais: 11,4 milhões de funcionários considerando os diversos vínculos (estatutário, celetistas e comissionados). De acordo com o RAIS/2018 – Relação de Informações Sociais do Ministério da Economia – 50% desses servidores ganhavam até três salários mínimos, R$ 2.900,00 na época. Com ganhos acima de 20 salários mínimos – R$ 19.000,00 brutos –, apenas 3% dos servidores públicos. O que representa pouco mais de 330 mil cidadãos, num país de 200 milhões de habitantes.
Portanto, somando esses dois valores e referências, mesmo que díspares, percebemos que o servidor público brasileiro, em media, ganha apenas 8% a mais do que o trabalhador da iniciativa privada. De acordo com o texto de José Álvaro de Lima Cardoso, Funcionalismo público, as mentiras que a elite te conta, publicado no Site Outras Palavras, dados do Banco Mundial indicam que num universo de 53 países, os servidores públicos ganham 21% a mais do que os trabalhadores da iniciativa privada. Número significativamente diferente dos 8% no caso brasileiro!
Esses números não devem esconder as diferenças salariais significativas entres os servidores no Brasil, sobretudo entre os poderes e entre os servidores federais, estaduais e municipais. Mas não parece razoável querer resolver esse problema empobrecendo tudo e a todos. Seria prudente, ao olharmos esses dados e as intenções reais dessa reforma administrativa, sublinharmos também os sempre escondidos e omitidos valores da inexplicável divida pública brasileiros que nos arruína desde o Plano Real de FHC. Em 2019, o governo federal transferiu para bancos e rentistas nada mais nada menos do que R$ 1,038 trilhão, equivalente a 38,7% do orçamento da união. Agora em 2020, a LOA (Lei Orçamentária Anual) destinou R$ 1,9 trilhão para o pagamento de juros e encargos da dívida pública. Ou seja, 57% do Orçamento.