Nestes dias de aquartelamento, em que somos fustigados pelo bombardeio do noticiário sobre o nosso Watergate, a fuga para a trincheira do passado pode ser a boa cloroquina para escapar da teimosia do Bolsonaro de não conceder a distensão ao Brasil. Pelo menos o único efeito colateral é o de rirmos de nós mesmos. Vivo de recordações. Não leio mais as falácias sobre a pandemia, enviadas pelo WhatsApp.
Só leio as fake news do fabulário brasileiro. Recebi esta semana um zap que consideraria convincente se eu tivesse menos sessenta anos nas minhas costas de setentão. O título explodiu no celular: “Masturbação protege do coronavírus”. Narra o caso de um rapaz baiano que gaba haver solado 46 vezes num só dia. Foi o único da turma que não pegou o corona. Mentira? Ora, Rabelais conta que Pantagruel comeu num regabofe dezoito carneiros. O que serão 46 soladas de um atleta baiano?
O presente não tem graça, só o passado. Volto aos anos 1980, quando havia distensão política em todo o globo terrestre e não essa falta de educação de hoje. Bolsonaro aprontava só na tropa de capitães atletas. Era um tempo bom. Kissinger, na década passada, havia feito o serviço completo para pacificar a Indochina. Gorbachov botava abaixo a Cortina de Ferro. Na China, já haviam mandado para o confinamento até Madame Mao, a viúva do Stálin chinês.
Em Foz do Iguaçu, Sarney e Alfonsin deixavam para trás as históricas desavenças sobre quem era o maior, Pelé ou los hermanos, e assinaram o pacto da desnuclearização do Cone Sul. Collor contribuiu depois, mandando tapar o buraco na Serra do Cachimbo onde se realizariam os testes atômicos. E não é que o mentecapto do Olavo de Carvalho, outro dia, pediu ao Bolsonaro para destampar o buraco e retomar o projeto da bomba? Cloroquina nele, Bolsonaro!
Por estas e outras é que a minha trincheira é o passado.
Ah, anos 80!
A cloroquina da distensão chegou em Brasília: nas mesas do bar-restaurante Florentino, cordial antagonista do Piantella, confraternizavam agentes da CIA e da KGB.
O agente da CIA era o simpático George Brown. A cidade inteira sabia. E ele despistava tanto quanto o Bolsonaro em entrevista na guarita do Alvorada sobre o teor da fita do Watergate. Era namorador, o danado do Brown. Namoriscava, num almoço, a socialite Maria Inês Pinheiro; na outra noite, era visto no Florentino com outra socialite, a Lígia Camargo. A simpática Lígia pode ter dado uma trava no Brown, porque ele firmou pé com a não menos simpática filha do notável Israel Pinheiro, patrono da nossa capital.
Todo o mundo era simpático naquele tempo. Presumo, maliciosamente, ter pesado na decisão amorosa do agente secreto o fator político. Sempre essa enxerida política. Lígia era malufista, e Maria Inês, tancredista por herança. Bem informado como convém a um espião, George sabia que Tancredo Neves ia papar o lugar do presidente João Figueiredo. Não desejo fazer um juízo de valor nesta questão, porque em matéria de amor ninguém tem o direito de meter o bedelho. Eu, como repórter que era, teria agido como o Brown. Os espiões, como os repórteres, querem amar e xeretar.
Os espiões da KGB, solteirões como o Brown, residiam numa república no Setor de Mansões do Lago Norte, ali perto da Casa da Dinda, de Fernando Collor, e da casa do bruxo do MDB, o deputado Thales Ramalho. Os russos gostavam muito de comer feijoada. Não guardei os nomes dos krilenkos e igors. Num sábado ensolarado desfrutei com eles na acolhedora mansão. Fui meio que de penetra, levado pelo vizinho deles, o Tubarão, codinome de um dos maiores boêmios da cidade, o Hélio Macedo Soares, que então trabalhava num organismo internacional, acho que a FAO.
Os russos eram muito simpáticos e falantes e me acolheram de coração. Também apreciavam caipirosca, como o seu concorrente da CIA. O Tubarão, num outro sábado, convidou dois dos russos e o Brown para almoçar a famosa dobradinha do chef do Florentino. Sei lá o que movia o Tubarão a juntar alhos com bugalhos e me botar no meio. Só pode ser a distensão. Bebemos muitas caipiroscas e delas resultou grande tumulto. O Tubarão não levava desaforo pra casa e quase foi aos sopapos com um imprudente tipo Bolsonaro, que achou de fazer graça com aquela reunião de contrários que expressava na mesa redonda do Florentino a pacificação reinante no globo terrestre. Bebíamos a cloroquina da distensão.
A embaixada da URSS, ali ao lado da embaixada do Vaticano, e a residência do embaixador dos EUA, no Park Way, abriam os salões em datas festivas. Frequentei ambos os endereços. Os anfitriões das duas representações diplomáticas tratavam os convidados a pão de ló, como se diz em Minas. A diplomacia de Gorbachov, cá entre nós, superava a pretensa rival de Ronald Reagan. Um jantar ficou indelével na memória gustativa: junto com meus dois amigos Gilberto, o Amaral e o Salomão, fomos tratados como príncipes em visita à Corte de São Petersburgo. Ah, o legítimo caviar beluga! Que delicadeza de torrada para levá-lo à boca com champanhe.
Em outra visita à mesa soviética, agora só com repórteres de convivas, a memória reteve apenas o sabor e os efeitos moderados da autêntica vodca. Pudera! Tínhamos, o repórter Artur “Cabeça Feita” Pereira, do Jornal do Brasil, e eu, uma saúde de atleta. De invejar o Bolsonaro, na época perdoado pelo general Leônidas Pires das barretadas cometidas num artigo publicado na Veja e por outras inquietudes de sua mocidade atlética na caserna. E um ano depois, já era vereador no Rio. Mas muito silencioso. Ou comendo pelas beiradas.
Em 1988, acompanhei a visita do presidente Sarney a Moscou. Gorbachov já detestava o comunismo. Até abreviou aquela enjoada cerimônia de deposição de flores no Mausoléu do Lênin na friorenta Praça Vermelha. Sarney, caboclo do quenta-sol maranhense, adorou a rapidez. Mas a melhor anedota aconteceu já no pomposo desembarque das autoridades brasileiras. O protocolo do Kremlin mimoseou o ministro da Indústria e Comércio, Roberto Cardoso Alves, o saudoso Robertão, refinado direitista, com uma limusine enorme, com cachoeira dentro, piscina, campo de golfe; e para o deputado Roberto Freyre, líder do Partido Comunista, o cerimonial moscovita destacou uma furreca Lada. Equivale mais ou menos à Kombi em que cabem todos os torcedores do meu Botafogo. Virgem Maria!
Era um carro tão traiçoeiro, o Lada, que o repórter Álvaro Pereira, quando comprou um exemplar ao tempo da abertura da importação do Collor, e depois de penar em Brasília com os enguiços, botou um cartaz no vidro traseiro: “Vendo esta merda”. Porém, vejam vocês o efeito colateral benéfico da cloroquina da distensão política: o amigo mais direitista que já tive é o cronista da Corte Gilberto Amaral. Pois o Gilberto foi a única voz em Moscou a condenar veementemente a decisão do Kremlin de dar um Lada ao Freyre e uma limusine ao Robertão. Mandou de lá um despacho para o Correio Braziliense em que deplorava a insensatez protocolar.
– Que absurdo! – bradou o Gilberto. – E a hierarquia, onde fica? – protestou o meu amigo tomado de dores pelo Roberto Freyre.
O presidente Sarney, vindo de um congraçamento no Salão dos Espelhos, respondeu com o vernáculo da juventude:
– Ora, Gilberto, comunismo já era, bicho! O negócio agora é outro.
Era outro mesmo. No restaurante Florentino, bebericava o chinês Fan Lin, que não era espião (ou era também) e representava uma firma comercial de maquinário para hidrelétricas. Estava de olho na construção delas na Amazônia. Mas deixava os negócios de lado, bebia todas e depois ia se engraçar com as primas que rodavam a bolsinha no Setor Comercial Sul, desde o Hotel Saint Paul até a calçada defronte ao restaurante japonês do Namba, fotógrafo da Veja.
Um ano depois de não fazer negócio algum mas saber o nome de todas as primas, o Fan Lin foi recambiado a Pequim por telex, o Watts-App da época. Chorou na despedida, coitado, numa mesa do Florentino. O consultor dos consultores, o onipresente Alexandre Paes dos Santos, meu amigo APS, morreu na conta das dezoito caipiroscas do Fan e, penalizado, foi levá-lo ao aeroporto. Em outros tempos, temeríamos pela vida do Fan. Mas, com a distensão, o chinês estava a salvo. Soubemos depois que ele foi transferido para beber saquê em Tóquio.
Em compensação, o Florentino acolheu os agentes franceses. Conheci-os na mesa do jornalista Anchieta Hélcias, o cicerone deles. Os franceses davam expediente part-time no Deuxième Bureau e despistavam na indústria militar. Meio metidos, desprezavam a caipirosca da CIA e do KGB, só bebiam uísque Cutty Sark. Beberam milhares de doses, foram substituídos por outros, estes passaram o bastão a novos agentes, os anos correram e os franceses não conseguiram vender um só caça Mirage para substituir a frota antiga da FAB.
Os agentes suecos, que nunca apareceram no Florentino e cujo país jamais foi conhecido por ter um serviço secreto tipo James Bond, passaram a perna nos franceses e no Anchieta. Venderam o caça Grippen, que agora robustece a FAB.
Talvez os suecos tenham sido beneficiados pela distensão, essa milagrosa cloroquina.