Começo reportando-me a artigo de minha autoria, publicado, em 22 de março de 2020, n´Os Divergentes. No rol de laureados com o Prêmio Nobel de Literatura, cujas obras, versando sobre epidemias, foram adaptadas para o cinema, não poderia faltar, evidentemente, José Saramago.
A versão cinematográfica de “Ensaio sobre a Cegueira”, conduzida com maestria por Fernando Meirelles, não deveria ser ignorada. Poderia desculpar-me dizendo que apenas deixei de mencioná-los − autor e obra − porque ali a epidemia não chegava a ter como desfecho a “caetana”, como Ariano Suassuna gostava de se referir à morte.
Penitencio-me, de toda maneira. Deixei de registrar logo Saramago, o único representante de nossa língua pátria naquele panteão…
Esqueçamos, pois, a “indesejada das gentes”, como dizia Manuel Bandeira. Celebremos a vida, que insiste em pulsar nos balcões e varandas por todo o mundo, inclusive nos becos da Favela da Rocinha, onde a vulnerabilidade de milhares de pessoas é preocupante.
Mas, para celebrar a vida, é preciso, também, denunciar o seu carrasco: o ultraliberalismo. É certo que, a cada divulgação de um novo boletim epidemiológico, ele vai se dissolvendo, mas resiste como o exterminador do futuro se afundando no cadinho de chumbo fervente.
Francamente: alguém ainda pode acreditar na tal ideologia do empreendedorismo competitivo como antídoto para a desocupação estrutural, quando está evidente que os trabalhadores autônomos de todos os graus, do camelô ao odontólogo, estão se ferrando? E o Estado? Quando mais precisaríamos dele, para a defesa daquilo que é mais caro ao ser humano, a própria vida, vemos que a saúde pública está sucateada.
Tornou-se a enésima “prioridade” em nome da contenção de gastos! O SUS já entrou em colapso há muito tempo, insignes autoridades! Chega a ser patético saber que vamos pedir penico a médicos cubanos e solicitar doações de respiradores mecânicos aos chineses, esses nossos inimigos viscerais, no entendimento de chokies que exercem o poder e que acham que dará certo seguir ao pé da letra a famosa frase de Margaret Thatcher: “Essa coisa de sociedade não existe; o que há e sempre haverá são indivíduos”.
Celebremos a vida! Aplausos aos abnegados profissionais da saúde! Quantos não estarão, agora, no calor dos acontecimentos, recordando aquele momento em suas vidas em que honraram o juramento de Hipócrates!
Penso, aqui, em particular, nos milhares de cuidadores, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, agentes comunitários de saúde, técnicos de laboratório, que residem em moradias precárias, localizadas em áreas de fácil contaminação. Como deixarão seus filhos, precisando fazer plantões e se dedicar, ainda mais, aos doentes? Como poderemos ser-lhes solidários, nessas circunstâncias?
Louvo, especialmente, cientistas que não se deixam seduzir pelo vil metal e se comprometem em encontrar vacina e remédios que possam ser disponibilizados a todo ser humano, ao redor do mundo, sem exceção. A esse estamento social não podemos deixar de agregar profissionais que, normalmente, como o coronavírus, passam invisíveis por nossas vidas, laborando em condições perigosas ou insalubres, desdenhadas na última Reforma da Previdência.
Reporto-me a faxineiros de hospitais, ambulatórios e prédios em geral, bem como urbanitários como um todo, trabalhadores dos setores de abastecimento de água, drenagem, esgoto sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, fornecimento de energia elétrica etc. Estendo, ainda, meus cumprimentos aos policiais e bombeiros que, em meio ao caos, colocam a vida, não a caveira, como prioridade.
Celebremos a vida nas pessoas daqueles integrantes de redes mutualistas de vizinhos solidários e de comitês populares nas periferias e conglomerados das metrópoles que estão mapeando idosos, avaliando a habitabilidade de suas moradias, buscando proporcionar-lhes acesso a medicamentos de uso contínuo, bem como a insumos e equipamentos indispensáveis, em caso de suspeita de infecção.
Celebremos a vida nas pessoas daqueles que socorrem os que vivem de “bico”, os empregados e empregadas domésticas, os prestadores de serviços em geral, cujos contratos, já precários, viraram fumaça de uma hora para a outra. E, como estou em dívida com José Saramago, celebremos a vida nas pessoas de corajosos voluntários de organizações como a Comunidade Vida e Paz, de Lisboa, a qual, a despeito de todas as dificuldades e restrições, prossegue, com as cautelas necessárias, no auxílio aos sem-abrigo, exatamente no momento que estes, como nunca, estarão abandonados à própria sorte.
Celebremos a vida, como nos for possível!
Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG