(CONTINUAÇÃO. SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE DO ARTIGO DESTE SÁBADO, 25/01/2020)
Brasil e Argentina na guerra
Nessas batalhas as tropas dos dois países se enfrentaram testando armamentos russo e norte-americanos de última geração. Os iraquianos recebiam aviões, tanques e artilharia soviéticas; também integraram essas batalhas os blindados brasileiros Cascavel e os lançadores de foguetes Astros.
Nas forças iranianas, equipamento americano remanescente, moderno, reabastecidos por um sistema clandestino organizado pelo tenente coronel Oliver North, assessor do CSN americano, sob a alegação de que os recursos arrecadados seriam empregados para financiar a derrubada do governo esquerdista pró-cubano da Nicarágua. Esses dissidentes, denominados “Contras”, ou contrarrevolucionários, eram a justificativa para uma corrente de propinas e subornos, que, ao fim, quase provocaram o impeachment do então presidente do Estados Unidos, Ronald Reagan, no bojo de uma CPI denominada Irã Contras.
Não deu em nada, mas possibilitou aos americanos testarem seus armamentos frente às máquinas de guerra soviéticas. Deve-se anotar que se os fabricantes brasileiros de material bélico (veículos blindados, transporte, uniformes, calçados, petrechos e suprimentos de campanha), no governo do regime militar, do general João Figueiredo, vendiam armas para o Iraque de Saddan Hussein; os argentinos da ditadura do general Leopoldo Galtieri vendiam armas e mandavam assessores militares para o Irã, alinhados com os americanos.
Naquela época dizia-se que o Iraque possuía a maior e mais poderosa e moderna máquina de guerra do Oriente Médio. O Irã contava com equipamentos atualizados, porém sem condições efetivas de operação, devido à falta de manutenção.
Entretanto, a guerra entre as duas potências regionais não teve resultado geopolítico, pois nenhum dos dois países conseguiu botar o outro em cheque, nem conquistar territórios ou ganhar posições. Além disso, os dois governos sobreviveram ao conflito. Ou seja: resultado zero, menos para os fabricantes de armas que ganharam muito dinheiro, como os Contras nicaraguenses, que receberam dinheiro iraniano, e os hospitais que tiveram de tratar quase dois milhões de feridos e mutilados, civis e militares.
A guerra das batalhas
Segundo os especialistas, travou-se um conflito nos moldes da Primeira Guerra Mundial (1914/1918) testando e usando armas convencionais da provável Terceira Guerra. Isto foi possível porque no país em desvantagem, o Irã conseguiu equilíbrio combatendo nos seus termos: guerra de trincheiras, estacionária, em avanços e recuos, circunscrita a um grande campo de batalha no extremo Sul do país, grande parte no Deserto de Majnoon, à margem esquerda do rio Sát al-Arava (confluência dos rios Tibre e Eufrates) exatamente em cima do lugar onde a Petrobrás descobriu petróleo nos anos 1970 e pretendia produzir um milhão de barris por dia.
Na verdade, só quem perdeu foi a estatal brasileira, que deixou de explorar aquele manancial de óleo, cuja descoberta foi a maior em terra naquela década. A empresa brasileira já havia aberto concorrência para construção de um oleoduto entre o campo de Majnoon até o porto de Basra, no Golfo Pérsico, quando as tropas passaram por cima de suas torres som seus tanques e infantaria, disparando mísseis táticos, muitos deles fabricados em São José dos Campos, na via Dutra, em São Paulo.
Ao trazer o inimigo para a guerra de trincheiras, o Irã praticou o mesmo formato estratégico de guerra que o general Qassen Suleimani pretendia empregar contra as tropas norte-americanas aquarteladas em Bagdá, quando foi eliminado num atentado exitoso pelos serviços secretos dos Estados Unidos, abortando, de vez, todo o processo militar e político que se desdobraria a partir da campanha que o líder iraniano pretendia pôr em prática.
A volta dos entreveros
A guerra em entreveros não desapareceu, não obstante a existência de armas de longo alcance, com mira para milhares de quilômetros e precisão milimétrica. A luta é frente a frente, travada em espaços pequenos, mínimos, tão exíguos que as lutas são individuais entre combatentes singulares, com tiro de pistola à queima-roupa e, mesmo, na arma branca das baionetas.
Seria esta a escolha do comandante iraniano que pretenderia, segundo as alegações dos serviços secretos norte-americanos, justificando a ação em Bagdá para eliminar o general iraniano e, assim, estancar a ação que estaria em vias de ser desencadeada na capital iraquiana.
A guerra em grandes batalhas, especialmente em ambiente urbano de grandes cidades, tem sido a média dos conflitos no Oriente Médio. Embora os conflitos árabes/israelenses dos anos 1960/70 e os combates contra o Estado Islâmico, na atualidade, sejam de frentes convencionais, as maiores partes desses enfrentamentos se dão dentro das cidades, como em Beirute, Alepo e tantas outras no conflito da Síria, no Iraque e no Curdistão. O mesmo aconteceu nos Balcãs, especialmente na Bósnia. Essa seria a tática preferida de insurgentes, pois desequilibra forças assimétricas.
Combates decisivos
Esse formato seria o preferido dos iranianos, não só para equilibrar-se com o poderio norte-americano, mas também porque essa é a tradição guerreira desde os tempos dos persas. A primeira guerra internacional iraniana, contra a Babilônia, em 334 A.C., foi vencida em combates dentro do ambiente urbano.
O imperador Ciro, O Grande, conseguiu infiltrar suas tropas pelos canais babilônicos, surpreendendo os defensores dentro de suas muralhas, obrigando-os a combater nas estreitas ruas da cidade. Foi uma vitória acachapante, iniciando, assim, a fase expansionista e imperialista da Pérsia, que só foi se encerrar com a derrota de Dario III para Alexandre Magno, da Macedônia.
A opção pela batalha decisiva também foi aventada por Adolf Hitler, quando estava cercado em Berlin. Evocando Frederico II, que na Guerra dos Sete Anos trouxe as tropas francesas, inglesas e holandesas para dentro de Berlin, onde lhes aplicou uma derrota acachapante, pretendia fazer o mesmo em abril de 1945, quando se encontrava cercado no seu bunker, mas tinha ainda uma força poderosa nas ruínas da cidade.
No livro “Os Últimos Dias de Hitler”, Gerhard Boldt, o autor, conta que foi enviado pelo Führer como emissário para, com mensagens e ameaças a seus generais, ordenar que fossem socorrer Berlim, então atacada fortemente pelos russos. Nenhum obedeceu, embora o Exército Alemão ainda tivesse dois milhões de homens descansados e bem armados de homens nas imediações.
Estas forças, que poderiam equilibrar a luta, não foram empregadas para defender a cidade. Os russos se aproveitaram então para reduzir a capital alemã a pó. A grande batalha decisiva não foi travada e o líder nazista suicidou-se no dia 30 de abril de 1945. Perdeu a guerra.
Esse seria o quadro imaginado por Suleimani. Se levado a efeito, seria o maior herói iraniano depois de Ciro, abrindo para si as portas da então maior cidade do mundo. (Ainda não se tinha notícia da China na Mesopotâmia.)
A Pérsia também usou a estratégia das guerras concentradas na defesa quando resistiu às invasões árabes no Século VII, durante a expansão muçulmana. Os iranianos esperam à formidável cavalaria maometana de Saade ibne Abi, em 633 e 636 D.C, lutando em seu território. A guerra continuou em 642 e 644, com as expedições do genro de Maomé, Omar de Medina.
O conflito terminou de forma inesperada, pois os iranianos reconverteram-se ao islamismo, adotando a religião do invasor. Porém, não inteiramente, pois houve um racha teológico, com os crentes dividindo-se entre xiitas, persas, e sunitas, árabes (hoje denominados sauditas por serem originários da península, desde aqueles tempos dominada pela família Saud).
Aliança tática com EEUU
Essa divisão entre as duas correntes religiosas vem se mantendo. Mesmo durante as cruzadas, quando ambos tinham nos cristãos os inimigos externos comuns, houve cisões e, não poucas vezes, líderes muçulmanos negociaram e se aliaram com os francos de Jerusalém para intervir nos conflitos internos, que nem sempre eram doutrinários.
Essa situação aparentemente repetiu-se quando os xiitas de Teerã se aliaram aos norte-americanos para enfrentar o Estado Islâmico Sunita. Porém, derrotado o antagonista, volta à tona a proposta antiga, qual seja, banir do Oriente Médio os invasores eurocêntricos, os agentes do demônio, como dizem os aiatolás.
Quando falam disso referem-se, claramente, aos costumes dissolutos que os países do Ocidente. Além disso, há um projeto geopolítico de unificar territorialmente o grosso do território xiita, sob a liderança de Kamenei. A cidade sagrada. O presidente sírio, Bashar al-Assad, atualmente está convertido num sátrapa persa dos tempos do reinado de Xerxes, o Grande Rei.
O plano parecia bem consistente. O País já tem uma força expedicionária treinada e doutrinariamente compacta, a chamada Força Quds , uma tropa de elite que operou combinada com os boinas verdes norte-americanos na guerra contra o ISIS (estado islâmico). Portanto, conhecedores de sua doutrina e do treinamento.
Essa grande unidade traz consigo uma tradição de sacrifício suicida, vindo do grupamento conhecido como Voluntários da Morte, criado em 1951, para ser a vanguarda de um levante contra a monarquia. O golpe falhou, mas ficou o resíduo. Reativado quando as forças armadas iranianas criaram a Guarda Revolucionária.
Seu líder, o general Suleimani, estava escalado para deter a resecularização do País, substituindo o moderado presidente da República Hassan Rohani, forçada pela classe média, cansada das limitações do regime religioso, exausta com as sanções e a estagnação econômica, e contrária ao imperialismo religioso preconizado pelos aiatolás. E também pela obsessão da bomba atômica, causa de todos os problemas, por seus custos econômicos e políticos.
O projeto de estabelecer uma continuidade territorial xiita, sob a administração doutrinária de um “papa” islamita, sentado na cadeira de Ali, o fundador do xiismo, em Esfahan, cidade sagrada do Irã, retomando os territórios persas do passado, hoje divididos entre Líbano, Síria e Iraque, sem, contudo, eliminar as fronteiras políticas, estaria em curso. Suleimai seria o líder militar da batalha para expulsar os infiéis dos Estados Unidos, repetindo o feito do xiita Saladino, o grande guerreiro que venceu os cruzados no Século XII.
No entanto, deu errado, pois os americanos não se constrangeram e mataram o general, quando ele estava a ponto de realizar o projeto, vencendo uma batalha nos moldes persas dentro da área urbana de Bagdá, para, a seguir, assumir a liderança do Irã, anulando a ofensiva liberal da classe média, que se verifica, atualmente, nas ruas da capital, pedindo o afastamento do governo dos clérigos.
Resta saber se os iraquianos concordarão com a destruição da sua capital. A 127 km estão as ruínas da Babilônia, como uma advertência. Não longe grandes cidades médio-orientais totalmente destruídas pelas guerras civis. Uma batalha em Bagdá teria como resultado inevitável o mesmo destino de Beirute e outras metrópoles que se transformaram em esqueletos urbanos sob a mira dos foguetes RPG dos insurgentes, como os norte-americanos chamam os guerrilheiros muçulmanos.
O covil do general
É uma situação periclitante. Nos confins das montanhas do Iêmen o general Abdul Relashhlai assume o posto de herói, no lugar de Suleimani. Ele seria o novo líder guerreiro dos Quds.
O Iraque, vizinho do Irã e ex-zona de ocupação pelos EUA, seria inevitavelmente envolvido numa confrontação. “Nos últimos anos, o Iraque tem estado numa situação bem difícil, por ser aliado próximo tanto dos americanos quanto de Teerã”, explica Guido Steinberg, do Instituto Alemão de Relações Internacionais e Segurança (SWP).
Além disso, Teerã tem influência sobre milícias xiitas no país vizinho. O Iraque estaria dividido entre o desejo de manter uma boa relação com os americanos e a enorme influência política, militar e econômica exercida pelos iranianos, afirma Steinberg.
Isso torna mais difícil para o País assumir uma posição no conflito entre Teerã e Washington. Tanto soldados americanos quanto milicianos iranianos estão presentes no Iraque; embora tenda, antes, a considerar os desejos de Teerã, o País tenta evitar uma escalada entre os dois partidos em seu território.
“Para o Iraque, seria uma catástrofe política se realmente ocorressem atentados. Acima de tudo, porque poderia haver ataques retaliatórios por parte dos americanos, possivelmente também contra milícias sob controle iraniano no Iraque.”
Em caso de uma confrontação militar, o governo iraquiano tentaria manter-se neutro, prevê Manaf Musawi, diretor do Centro de Estudos Estratégicos de Bagdá. No entanto, tanto grande parte das autoridades de segurança, submetidas às milícias xiitas, quanto setores da população se posicionariam contra os EUA.
As cartas estão dadas na mesa. É um pôquer perigoso.