Em tempos de pandemia, assim como a maioria dos meu amigos e colegas, sigo à risca as recomendações dos sanitaristas sobre os cuidados para os perigos de contágio pela Covid-19. Saio de casa somente para fotografar os fatos que rolam na chamada seara do poder. Tal como todos, resolvo por meio do computador meus afazeres. Na tevê e nas telas da Internet me atualizo sobre as notícias de mundo afora e Brasil adentro. Ainda assim, sobra um tempo para rever filmes, principalmente aqueles que marcam minha memória. Foi o que fiz dia desses.
Pois bem, há pessoas que, com sua passagem pela vida, realmente contribuem para a grandeza da espécie humana. E sem dúvida o cineasta italiano Ettore Scola, está nessa seletíssima lista. A coleção de filmes de sua criação é impressionantemente irretocável. Todos eles contém o que o cinema pode refletir de melhor do sentimento humano, as mazelas do dia-a-dia, o fino bom humor, personagens magníficos, diálogos maravilhosos, composições de primeira grandeza, fotografia adequada.
Mas, sobretudo, todos os filmes de Ettore Scola contêm algo essencial para as pessoas de boa alma: leveza e poesia.
Todos os longa-metragens que formam sua obra são realmente admiráveis. Imperdíveis, os vi todos. Alguns deles, muitas vezes. Cada um de seus admiradores tem predileção por um filme. E, com certeza, têm razões para isto. Seja, “Um Dia Muito Especial”, “Nós Que Nos Amávamos Tanto”, “Feios, Sujos e Malvados”, “O Baile”, “La Nuit de Varennes” ou “La Cena”, todos são nota 10. Evidentemente, tenho também o de minha preferência: La Cena, “O Jantar”. Há a versão original, falada em italiano e também com legendas em português, de 1998.
Ao contrário de, por exemplo, “O Baile” — que possui linguagem visual tão forte que dispensa a palavra, a voz dos personagens nem existe e torna-se desnecessária –, “O Jantar” privilegia o diálogo. Mesmo assim, a fotografia é perfeita. Sem nenhum salamaleque dos detestáveis filmes cheios de esfeitos especiais. Nada de espalhafato.
E que história de Scola nos conta em “O Jantar”? Não vou dar spoiler, somente algumas dicas do que rola no belo filme. São várias as histórias, todas revestidas de requinte, perspicácia e bom humor. De cada um dos personagens que frequentam o acolhedor restaurante Arturo Al Portico, em Roma. A começar pelo solitário mestre aposentado Vittorio Gassman que observa de sua mesa cativa o comportamento e o movimento de outros habituês do lugar.
Vittorio Gasmann repara também no contraste do papo da luxuriosa e prafrentex mãe cinquentona Stefania Sandrelli com a recatada e careta filha adolescente. Repara no misterioso charme da dona do restaurante, Fanny Ardant, em conversa discreta com um amigo secreto ao telefone.
O filme de Scola leva você à acalorada discussão do cozinheiro comunista com o garçom de direita. Sempre discreto, Gassman repara na mesa da gordinha sedutora acompanhada de quatro amores que se alternam ao mesmo tempo em sua intimidade. Repara no mágico astuto que ludibria o ingênuo turista japonês. Vê o desespero do professor universário Giancarlo Giannini ao ouvir os planos de futuro da aluninha apaixonada por ele. Repara no grupo de adolescentes que para com o papo juvenil e põe-se a ouvir, encantados, o impacto da suavidade do quarteto de violinos ao tocar “A Primavera” de Vivaldi.
Enfim, “O Jantar” é imperdível. Di prima qualitá!!! Aliás, o último filme do ator Vittorio Gassman. Impecável obra de Ettore Scola, que nos deixou em janeiro de 2016, aos 84 anos. É um desses filmes que a Academia de Hollywood nunca seleciona para o Oscar.