Liberdade ou propriedade. O que pesa mais na balança da Themis brasileira

O Direito brasileiro confere maior valor ao direito à propriedade do que ao direito à liberdade. Ou seja, não há perda de propriedade por execução de sentença antes do trânsito em julgado, diferente do que acontece hoje com a privação de liberdade. É o que detalha artigo de Thales Coelho, para quem a propriedade é mais protegida que a liberdade

A deusa Themis

A Constituição Federal admite, pela intervenção estatal, os perdimentos da liberdade e da propriedade, condicionando-os da seguinte forma: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, inciso LIV, CF).

Frente aos demais valores resguardados no caput do art. 5º da Constituição, alça-se o direito à vida ao topo das primazias. Se isso é efetivamente observado seria boa matéria para uma próxima ocasião.

Por ora, fixemo-nos no seguinte: juristas devotam-se à busca de critérios razoáveis acerca de preponderância, equivalência ou ponderação dos restantes objetos de tutela estatal constitucionalmente arrolados no citado dispositivo. A Ministra Cármen Lúcia, por exemplo, então presidente do STF, assinalou, em 28 de março de 2018, que a Constituição garante a inviolabilidade do direito à liberdade em amplitude inferior, apenas, ao direito à vida.

Ministra Cármen Lúcia, do STF, considera que o direito à liberdade está abaixo apenas do direito à vida – Foto: Orlando Brito

A perda da liberdade de locomoção norteia-se, como se sabe, no plano infraconstitucional, pelas normas de direito processual penal. Já a supressão da propriedade é regulada, precipuamente, pelo direito processual civil.

É certo que poderá ocorrer o perdimento da propriedade como sanção em processo penal, consectário de conduta tipificada como ilícita, uma vez apuradas a antijuridicidade e culpabilidade do agente. A Constituição expressamente o autoriza (art. 5º, inciso XLVI, alínea “b”, CF).

Regras especiais do processo administrativo estabelecem, ainda, procedimento para desapropriação por necessidade pública ou por interesse social, o que também encontra na Constituição Federal a devida licença (art. 5º, inciso XXIV, CF). O que nos interessa, porém, é o fenômeno do perdimento da propriedade na ambiência de reprodução e circulação do capital na sociedade mercantil, de que cuida, particularmente, o chamado Direito das Obrigações.

Um enfoque interessante para analisar comparativamente esta questão pode ser a confrontação de um momento específico em que, mesmo antes do trânsito em julgado de sentença judicial, o direito processual admitiria ou não o perdimento da liberdade de locomoção ou da propriedade. Esse momento seria exatamente a tormentosa  questão que, atualmente, mobiliza mentes e corações no Brasil: a  execução provisória de sentença.

A execução provisória da sentença, no processo penal, tem sido muito discutida ultimamente. Como se sabe, em 5 de fevereiro de 2009, o Plenário do STF, ao julgar o Habeas Corpus nº 84.078, reviu sua jurisprudência nessa matéria. Desde então, a Suprema Corte passara a entender só ser admissível a execução de sentença penal condenatória após o seu trânsito em julgado.

No entanto, em 17 de fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar, em sessão plenária, o Habeas Corpus nº 126.292 retornou ao status quo ante, ou seja, novamente assentou a possibilidade de decretação de perdimento de liberdade de locomoção da pessoa, na pendência de recursos desprovidos de efeito suspensivo.

Este último posicionamento foi desafiado pelas Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e 44, pelas quais se buscou o pronunciamento do STF, no sentido de se declarar, à luz do art. 5º, inciso LVII, da Lei Maior, a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual, “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Indeferindo o pedido, em liminar, o STF sustentou que o art. 283 do CPP não impede a execução da pena por condenação em segunda instância.

Finalmente, o STF enfrentará o julgamento de mérito dessas ações de controle concentrado de constitucionalidade. Vale lembrar que o relatório foi entregue pelo Ministro Marco Aurélio em dezembro de 2017 para ser pautado em sessão plenária da Corte. Tramitando em conjunto, registre-se que os efeitos do acórdão que nelas vier a ser proferido serão vinculantes para toda a magistratura.

Com efeito, o acirrado debate em torno dessa polêmica intensificou-se por conta do mencionado habeas corpus que teve como paciente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Pouco se tem falado, em meio a essa algaravia, da execução provisória de sentença no processo civil. A questão, no julgamento do habeas corpus preventivo em que Lula era paciente, veio a ser muito bem suscitada pelo Ministro Ricardo Lewandowski.

“A ordem jurídica vai ao limite,
quando se trata de preservar o direito à propriedade”
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Por essa via (direito processual civil) chega-se à privação provisória ou definitiva de bens.  O § 1º do art. 513 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 2015) reconheceu a legitimidade do cumprimento provisório (ou execução provisória) de sentença que reconhece o dever de pagar quantia.

Já o art. 520 do mesmo código dispôs sobre os procedimentos a serem observados para o cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo, estabelecendo que deva ser realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo. O referido dispositivo, entretanto, sujeitou a execução provisória a especificidades estabelecidas no próprio CPC.

Além do direito de o executado apresentar impugnação à execução (art. 520, § 1º, combinado com art. 525, ambos do CPC), dentre essas especificidades está o condicionamento do levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, à prestação de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.

Caução é cuidado; é cautela; é precaução; é garantia; é segurança. É o que ensinam os dicionários. Mesmo quando tudo esteja a indicar ao devedor a sua derrota, ainda assim a ordem jurídica cerca de proteção o seu direito de propriedade, prestes a dissipar-se.

É certo que a modificação incidente sobre o inciso III do art. 521, com a redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016, facilitou a dispensa da mencionada caução, mas não ao ponto de afastá-la graciosamente. Prevalece intangível o disposto no parágrafo único do mesmo artigo: “A exigência de caução será mantida quando da dispensa possa resultar manifesto risco de grave dano de difícil ou incerta reparação”.

Assim, se aquele credor que logrou ser vencedor na demanda após a apreciação de derradeiro recurso com efeito suspensivo não dispuser de condições para oferecer caução suficiente e idônea, capaz de afastar “manifesto risco de grave dano de difícil ou incerta reparação”, dificilmente ocorrerá o perdimento dos bens do devedor, até que se possa cumprir a sentença de forma definitiva, ou, em outras palavras, até o seu trânsito em julgado.

A ordem jurídica vai ao limite, quando se trata de preservar o direito à propriedade. Leva a efeito o máximo de acautelamento de maneira a evitar a contingência do grave risco de difícil ou incerta reparação pela perda de bens.

Faz o mesmo quando se cuida de preservar a liberdade da pessoa, ainda que o direito à liberdade só perca em primazia para o direito à vida, como apregoado por tantos e tantos magistrados? A resposta é negativa.

Qual a caução que se impõe, ante a iminência da perda de liberdade, após o esgotamento de recursos dotados de efeito suspensivo no processo penal? Nenhuma.

“[O STF] passou um atestado de que maior zelo
se deve prestar à proteção da propriedade
do que aquele que o devido processo legal confere à liberdade”
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Dessa sorte de cautela, de precaução, se tomarmos como referência a posição do STF prevalecente até o momento, não cuida o direito processual penal, diferentemente do que se dá no direito processual civil, ante a possibilidade de desvanecimento do direito de propriedade. Extrai-se do entendimento dominante na Suprema Corte, desde 2016, a desnecessidade de imposição de cautelas que neutralizem ou arrefeçam risco de grave dano de difícil ou incerta reparação, quando em jogo o direito à liberdade de locomoção.

Decidindo como decidiu na histórica sessão de 4 para 5 de abril de 2018, a Suprema Corte, apesar da peroração da ministra Cármen Lúcia, em 22 de março de 2018, passou um atestado de que maior zelo se deve prestar à proteção da propriedade do que aquele que o devido processo legal confere à liberdade.

Neste ponto evidencia-se ser a ordem jurídica mais generosa com o devedor que vê ameaçada a sua condição de proprietário do que com o réu no processo criminal que sente avizinhar-se no horizonte, por pronunciamento judicial,  o cerceamento a seu direito de ir e vir. Ainda que juristas tentem fixar uma regra, segundo a qual valores relativos às pessoas têm precedência sobre valores de índole material, na realidade, no Brasil, o que se observa nas regras que ditam a dissipação da liberdade (valor de índole pessoal) e da propriedade (valor de índole material) é exatamente o inverso.

Seria admissível dar maior proteção ao direito de propriedade do que ao direito de liberdade? É isso que quer proclamar a ordem jurídica burguesa, devendo-se considerar mera retórica a proclamação da superioridade dos valores de índole pessoal sobre os de índole material?

Mas essas questões vão, pouco a pouco, tornando-se indagações menores. O que assalta nossas mentes são, agora, reflexões de um patamar superior: seria admissível dar maior proteção ao direito de propriedade do que ao direito à vida?

Thales Chagas Machado Coelho é mestre em Direito Constitucional UFMG, professor de Pós-Graduação em Direito Eleitoral no Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN)

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