O presidente da República não esconde sua admiração pelos EUA. Deveria, por isso, dedicar-se a estudar e conhecer um pouco mais suas instituições, sua história e seus vultos.
Por certo, ele já ouviu falar na tal Área 51, instalação mantida pela Força Aérea norte-americana no deserto de Nevada. É um ícone da realidade paralela, desde o final da década de 40 do século passado.
Emanam dali, desde então, fantasias que povoam as mentes de milhões de pessoas que vivem nos EUA e de “aliens”, curioso termo que designa, em inglês, os que procedem de outros países, ou até mesmo de outras galáxias. A Área 51 é prato cheio para Hollywood, templo sagrado da realidade paralela.
A realidade paralela coexiste com a nossa própria e subsidia “teorias” estapafúrdias, que orientam a práxis, inclusive dos que detêm poder político. Após seis meses de governo, já temos motivos suficientes para crer que, no Brasil, o presidente da República vive em uma realidade paralela.
Mas, além da Área 51, os EUA proporcionaram coisas interessantes e que, de fato, ainda impactam o mundo real dos norte-americanos. O Paper 51, por exemplo, que de ficção não tem coisa alguma.
Trata-se de um dos ensaios produzidos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay e publicados em jornais nova-iorquinos, após a aprovação da Constituição, na Convenção de Filadélfia, no verão de 1787. Posteriormente, foram consolidados em um livro chamado The Federalists.
O objetivo de seus autores era explicar aos cidadãos o texto constitucional aprovado e, ainda, convencê-los da sua pertinência. É que, para entrar em vigor, a Constituição precisaria ser ratificada por três quartos das assembleias legislativas das treze antigas colônias britânicas que comporiam os Estados Unidos da América. Muita tinta precisaria ser gasta para persuadir os eleitores ainda um tanto indecisos sobre a novidade institucional.
Um dos oitenta e cinco artigos, o de número 51, foi escrito por James Madison, que, mais tarde, se tornaria o quarto presidente dos EUA. Madison era um dos convencionais que tomaram parte no trabalho de elaborar a Constituição, na cidade da Filadélfia. Representava o Estado da Virgínia.
Os debates entre os convencionais e as votações eram sigilosos, mas Madison teve o cuidado de anotar tudo o que ali se passou. Desde que suas observações foram publicadas, não há um único juiz da Suprema Corte que não tenha se debruçado sobre elas para entender o sentido de cada uma das cláusulas da Constituição dos EUA.
Servem de guia para a interpretação judicial. Assim como os The Federalists.
No Paper 51, Madison discorre sobre a importância dos chamados “freios e contrapesos” (checks and balances) entre Legislativo, Executivo e Judiciário e da forma federativa de Estado, explicando por que a chamada equipotência entre os três poderes e divisão de competências entre entes federados são essenciais para a preservação da liberdade. Bem, nesse ponto, temos de admitir que, entre nós, a realidade paralela vem se impondo à doutrina madisoniana de forma inequívoca.
Mas outro tema, também muito caro a Madison, é objeto de considerações nesse mesmo artigo. Diferentemente do que preconiza o presidente da República, ali o autor contradiz a ideia de que a democracia seria fazer prevalecer o direito da maioria e ponto final.
“Se uma maioria estiver unida por um interesse comum, os direitos da minoria ficarão pouco seguros”, adverte Madison. Para o ilustre articulista virginiano, “numa sociedade sob cujas formas uma facção mais forte pode facilmente unir-se e oprimir a mais fraca, pode dizer-se com verdade que nela reina a anarquia, tal como num estado de natureza em que o indivíduo mais fraco não está protegido da violência do mais forte”.
Mas minorias convertem-se em maiorias. E como “pau que dá em Chico também dá em Francisco”, Madison lembra que, onde prevalece a lei dos mais fortes, as minorias, tornando-se maiorias, podem pretender “a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”.
Daí, conclui Madison, “até os indivíduos mais fortes são impelidos, pela incerteza da sua condição, a submeter-se a um governo que possa proteger os fracos bem como eles próprios”. Em outras palavras, no Paper 51 Madison advoga que todos devem respeitar a Constituição, o único meio de se assegurar a proteção de todos.
Demonstra sensatez quem pratica a política orientando-se pelos ensinamentos do Paper 51. Delira quem a faz tomado de paixão pela realidade paralela. Para esses a política, em última instância, não passa de uma guerra nas estrelas.
* Thales Chagas Machado Coelho é mestre em Direito Constitucional UFMG, professor de Pós-Graduação em Direito Eleitoral no Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN)