Bondade com chapéu alheio é um provérbio português que bem pode servir para a celeuma criada em torno da liberação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o FGTS, a pretexto de reativar a economia. O presidente Jair Bolsonaro quer dar 500 reais por cabeça; o Congresso quer aumentar para 1.000 reais.
O problema é que esse dinheiro não é de nenhum desses benfeitores e nem dos beneficiados. O plano desvia os fundos de suas finalidades.
O correto seria capitalizar essa poupança das empresas em nome de seus empregados para assegurar a cobertura dos custos de rescisões de contratos de trabalho.
Esse dinheiro foi parar nessas contas do FGTS para cobrir o custo das demissões, sem que as despesas trabalhistas abalem a saúde das empresas que estejam dispensando empregados para ajustar suas gestões. Quando bota um empregado na rua, o patrão já pagou a indenização. Este é o modelo.
Melhor dizendo: liberando os dinheiros do FGTS para devedores inadimplentes de compras no comércio feitas no passado, o sistema dá uma injeção na veia do consumo. Ao pagar a prestação atrasada, reabilita o prestamista bloqueado, que volta a ter crédito, gerando de pronto uma expectativa real de compra, que reativa a roda da fortuna.
No mesmo ato em que se compromete a pagar prestações, o Leão pega sua parte. Tilintam os tostões nos cofres públicos, nesse primeiro momento, quando o cliente bota a mão na mercadoria.
Desconto automático na nota fiscal. Depois, feita a compra, arrecadadas taxas e impostos, comércio e clientes que se entendam para reaver aqueles valores.
Voltando aos provérbios antigos vindos de Portugal: o governo atira no galo e acerta na galinha. 42 bilhões cairão do céu, multiplicando-se, para efeito fiscal, em 420 bilhões. Uma bela grana.
Esses dinheiros destinados a pagar demissões, logo que se criou o FGTS, caíram no olho grande dos governantes. Tal qual os fundos de pensões, os antigos institutos de previdência. Bilhões logo se acumularam.
Atualmente, em 2018, o FGTS acumulava depósitos no valor de 520 bilhões de reais. Esses fundos alimentam as operações de crédito habitacional em R$ 305 bilhões, outros 36 bilhões em projetos de infraestrutura, e 2,5 bilhões para refinanciamento de dívidas dos municípios.
Suspeita-se que esta última destinação já entre nas áreas de calotes anunciados. No passado, o Tesouro Nacional teve de cobrir todas essas inadimplências de cidades e estados.
Os créditos imobiliários correm risco de seus tomadores não terem como devolver os empréstimos. A maior parte vai para as habitações populares, do programa Minha Casa Minha Vida, que tem como alvo a criação de empregos.
Cada milhão de reais gasto nesse programa cria 22 empregos diretos. Oito milhões de trabalhadores da construção civil encontram vagas no programa que foi a menina dos olhos da ex-presidente Dilma Rousseff, e que nenhum de seus sucessores teve coragem de desativar.
Vale mais pelo fator emprego do que por habitação, mas resolve, em verdade, os dois lados: dá teto para quem vive em barracos e serviço para trabalhadores de baixa qualificação e pequenos salários.
Entretanto, o programa está ameaçado pelas retiradas sem cobertura, como são os saques antecipados. Em 2018 os depósitos alcançaram 18,4 bilhões de reais. Os saques, entretanto, já chegaram a 4,9 bilhões em 2017. Sinal amarelo.
As taxas de juros pagas pelos compradores das casas erguidas com dinheiro originado no FGTS, são inferiores aos do mercado. Isto se justifica porque são fundos para investimentos de longo prazo.
Juros favorecidos seriam aceitáveis: 4,9% ao ano para habitações, 6,2% para infraestrutura e 5,6% para refinanciamento dos municípios. Interesses baixos que poderiam, em tese, ser honrados mesmo por tomadores de rendas ínfimas.
Sempre frisando: quem paga é o consumidor final. O problema é que o histórico desses empréstimos não autoriza otimismo de ressarcimento. O Tesouro garante.
Como se recorda, foi para pagar indenizações que o FGTS foi criado em 1966. Naquela época objetivava criar um modelo trabalhista que não se chocasse com as normas dos países desenvolvidos.
Até então, a lei assegurava estabilidade no emprego para trabalhadores com 10 anos ou mais de serviço numa mesma empresa. Para os investidores do primeiro mundo era uma legislação antiquada dos tempos dos populismos da década de 1930.
A Europa livrara-se desse peso nas reconstitucionalizações de vencedores e vencidos no pós-guerra. E os Estados Unidos, os grandes investidores que o Brasil procurava atrair, não aceitavam essas benesses.
É bom ressaltar que nos países periféricos do terceiro mundo a estabilidade continuou em muitos deles por anos e décadas. Já o Brasil mudou seu sistema de garantias, adequou-se e deu partida para o famoso “Milagre Econômico” do ministro Delfim Neto, no final dos anos 1960 e ao longo dos 1970.
A consequência direta do antigo sistema era que as empresas estrangeiras no Brasil, as norte-americanas em particular, demitiam seus funcionários ao chegarem aos nove anos de casa. Esse exemplo passou a ser seguido pela nascente indústria nacional.
Aquela lei, em vez de garantias para o assalariado, virara uma ameaça ao emprego e um lobisomem a atormentar a força de trabalho.
Para piorar essa situação, os patrões diziam que era muito comum os empregados que conseguissem estabilidade mudassem de comportamento, convertendo-se em problemas reais à operação das firmas, especialmente de fábricas e oficinas.
A ideia luminosa para substituir a estabilidade por um mecanismo digerível pelo sistema de garantias já implantado na Era Vargas foi obrigar as empresas a financiar um fundo para indenizações, contribuindo com oito por cento do salário de cada empregado. Aos olhos do público em geral, o fundo de garantia era uma generosidade da empresa que estava dando uma gorjeta.
Na realidade, esse percentual constitui mais um penduricalho na folha de pagamento, obviamente retirado dos proventos dos trabalhadores. Dinheiro de salário como se sabe, é custo. FGTS é custo, vai para o preço da mercadoria, subtraído no bolo da chamada mais-valia.
Foi então que, em 1966, a dupla Campos / Bulhões (Roberto Campos, ministro do Planejamento, e Octávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda), que formularam e conduziram as grandes reformas do governo Castello Branco, conceberam esse modelo que funciona até hoje: um fundo para garantir indenizações.
Fácil de entender. Acalmou-se, dessa forma, a grita da oposição trabalhista, dando segurança aos empregados, que, tal qual nas reformas previdenciárias de hoje, tremiam ao ouvir falar em fim da estabilidade.
Embora, pelas razões já comentadas, a estabilidade fosse um logro, pois aquele mecanismo era uma carta de demissão na mão aos nove anos de serviço, os empregados temiam sua extinção pura e simples.
Veio o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Dinheiro no banco; indenização paga adiantada. Era esta a percepção.
Com o tempo, o fundo de indenizações passou a ter outras finalidades. Algumas muito peculiares, pois as demissões sem justa causa entraram no cardápio de negociações direta entre patrões e empregados.
Levantar o Fundo era um jeito mágico de botar dinheiro vivo na carteira. As dispensas amigáveis com status de justa causa passaram a ser um prêmio para o empregado, que assim levantaria seu fundo de garantia e forraria os bolsos.
Naqueles tempos de pleno emprego, a rotatividade de mão-de-obra era uma realidade de mercado, todo mundo mudando de emprego para ganhar mais noutra empresa.
Na economia, esse dinheiro foi desviado para investimentos micados, como o Banco Nacional de Habitação, o BNH, que financiou a casa própria da classe média. Na hora de pagar, o saldo era maior que o valor do imóvel.
Com isto, o sistema entrou em colapso e o banco faliu, porque os compradores não tiveram dinheiro para pagar os juros escorchantes que, nominalmente, seriam a garantia do FGTS. E muitos outros desvios de finalidade acabaram jogando a liquidez do fundo de garantia nas costas do Tesouro, que teve de pagar o rombo.
Então vieram os novos tempos. O uso dos recursos do Fundo ficou a cargo do BNDES, que somente liberava dinheiro se o tomador cumprisse todas as exigências dos contratos.
Consequência: o setor de saneamento, que seria o principal destino, estava quebrado. As empresas estaduais de água e esgoto não preenchiam nenhuma das exigências do banco e seus controladores, os governos estaduais, não teriam a menor possibilidade de pagar os atrasados que sujavam seus balanços.
Então mudou-se o comando do saneamento dos estados para os municípios e abriu-se a legislação para a privatização das empresas. Livres do jugo dos estados, os prefeitos poderiam contratar os serviços de fornecedores particulares. Era o discurso.
O ressarcimento seria coberto pelas contas de milhões de usuários. Recebíveis garantidos.
O fundo estava a salvo e seria um motor para investimento de longa prazo em infraestrutura. Em vez de agentes financeiros duvidosos, dizia-se, como nos tempos do BNH, o retorno do investimento sairia da pia de lavar as mãos e do esgotamento do vaso sanitário, cada vez que fossem acionados. O melhor dos mundos.
Bem, aí chegaram mais problemas, pois pouquíssimos municípios tinham condições efetivas de fazer os projetos técnicos e econômico-financeiros para preencher as minuciosas e sofisticadas exigências do BNDES. Tampouco tinham dinheiro para contratar escritórios especializados.
Esses planos que são comuns nos grandes empreendimentos, estavam fora do alcance de cidades que não tinham sequer uma secretaria de fazenda organizada.
Qualquer apoio dos fornecedores para ajudar os prefeitos a preencher os formulários necessários a chegar no BNDES caíam no terreno das suspeições. Privatização ainda é palavrão no Brasil mesmo nos pequenos e remotos burgos.
Nas câmaras de vereadores dos grandes municípios, controladas pelos partidos políticos, a palavra privatização chegava demonizando as propostas. Nos bastidores, as empresas estaduais, que perderiam o monopólio, ofereceram-se como prestadoras e serviço e, rapidamente, fecharam contratos com as prefeituras.
Os governadores ficaram quietos, deixando o problema fluir. As empresas estaduais, que já operavam os sistemas de águas (os esgotos ainda esquecidos), continuaram prestando o serviço, como se fossem firmas particulares.
Para os governadores, ter as suas estatais nesse mercado é muito interessante, pois a empresa prestadora o serviço é que recebe, nos guichês, as contas de águas de cada casa. Com isto, o dinheiro cai no caixa de uma organização subordinada ao governo estadual. E assim ajuda a liquidez do Tesouro do Estado.
Já o ônus do valor da tarifa e deficiências do serviço é do prefeito. Muito prático e conveniente. Enquanto isto, os investimentos na infraestrutura pararam e o Brasil continua sendo um país indigente em saneamento básico.
Empregar o dinheiro que as empresas repassam aos bancos públicos para dar uma garantia ao trabalhador é um desafio para os gestores desse sistema financeiro. O FGTS já foi sangrado pelo BNH.
Agora, com tais saques, perde seus fundos de liquidez. No ano passado, o governo Michel Temer liberou o saque nas contas inativas.
Era dinheiro perdido, dizia-se. Foi uma esmola bem-vinda.
Agora o novo governo raspa o fundo do cofre nas contas ativas, pensando em criar recursos para cobrar impostos. É o que se vê além da neblina: voracidade fiscal.