“Eu trabalhei na época infiltrado entre os estudantes em Diretório Central Estudantil. Tinha que obter informações de quem estava participando e de que se tratavam as reuniões e depois acabava informando o Serviço de Informação”.
Newton Ishii, o “Japonês da Federal”, no “Programa do Bial”, TV Globo.
O golpe militar de 1964 traz até hoje efeitos devastadores na política nacional, e no perfil dos nossos homens públicos. Assassinatos, desaparecimentos, torturas, exílios, buscaram devastar o campo político de esquerda. Fazia parte da estratégia de terra arrasada da ditadura implodir o ascendente movimento estudantil, reprimido com violência, identificando e prendendo suas lideranças e desarticulando e jogando na clandestinidade organizações representativas, como os DCEs (Diretórios Centrais Estudantis), as UEEs (Uniões Estaduais dos Estudantes) e a UNE (União Nacional dos Estudantes), entre outras. De 1969 a 1973, o movimento estudantil, que respondia ao regime com reivindicações, protestos e manifestações, foi praticamente desarticulado – ponta de lança do descontentamento popular contra a ditadura, que posteriormente teria como ator principal o movimento operário, a partir das greves operárias no ABC, onde surgiria um certo Luiz Inácio da Silva.
Antes, deixaram atos lendários, como a Passeata dos Cem Mil, no Rio, em 1968, considerada a mais importante manifestação da resistência. Naquele ano, o estudante secundarista paraense Edson Luís, 18 anos, fora assassinado com um tiro no peito por policiais militares, que invadiram o restaurante Calabouço, no centro do Rio. Do velório até a missa, realizada na Igreja da Candelária, foram despertados protestos em todo o país.
A complacência, tolerância e indulgência com os responsáveis pelos atos impensáveis cometidos em nome do Estado ditatorial, dos generais-presidentes – enfileirados em retratos na parede do gabinete do capitão-presidenciável Jair Bolsonaro, como um altar maligno – ao “guarda da esquina”, fazem com que o país conviva até hoje com torturadores, informantes, censores e todo o zoo do autoritarismo em praça pública. Nunca foram punidos. Em outubro de 2015, um ídolo do infame Bolsonaro e do paranoico Cabo Daciolo, outro presidenciável de coturno, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, de 83 anos, que foi chefe do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo, órgão de repressão política, morreu sem nunca ter sido preso. Pesam sobre ele acusações de ser responsável direto por pelo menos 45 mortes e desaparecimentos forçados, de acordo com relatório elaborado pela Comissão Nacional da Verdade. Ustra foi o único militar brasileiro a responder por um processo de tortura durante a ditadura. Neste contexto, está o “guarda da esquina” Newton Ishii, que serviu aos estertores do regime. Mas serviu com requinte: entregando estudantes.
Catapultado a ídolo da Lava Jato – nada que se compare ao deus Moro, mas no panteão dos federais que escoltaram figurões da política, especialmente do PT -, o “Japonês da Federal” apareceu em fotos escoltando “presos importantes” como José Dirceu, Marcelo Odebrecht e Léo Pinheiro -, virou “figura pública”, rendeu memes, tirou selfie com Bolsonaro no Congresso, virou boneco de Olinda e máscara de carnaval, virou personagem da série chapa-branca “O Mecanismo”, da Netflix, e, finalmente, lançou uma biografia, “O Carcereiro”, escrita pelo jornalista (sic) Luís Humberto Carrijo. Era o apogeu do culto à Lava Jato e a cada nova operação surgiam ídolos momentâneos, como o “Hipster” da Federal, que escoltou Eduardo Cunha, com um coque samurai.
Newton Ishii, que se aposentou em fevereiro deste ano, aos 62 anos, viveu um revés em junho de 2016, quando foi preso – e, claro, logo solto -em virtude da Operação Sucuri, que descobriu envolvimento de agentes na entrada de contrabando pela fronteira. Passou a cumprir pena em regime semiaberto, usou tornozeleira eletrônica e logo a tirou. Antes, em 2009, fora condenado por facilitar a entrada de contrabando no país. O funcionário público dos sonhos. Mas a parte menos conhecida do prontuário de Ishii, confessado recentemente em um talk show, foi que trabalhou, na época da ditadura militar, em diretórios estudantis, como infiltrado em reuniões, assembleias, encontros. Fingia-se de amigo, produzia relatórios e depois passava as informações para quem poderia perseguir a garotada.
Nada acontecerá com o X-9 da ditadura, que entregava estudantes, nem nunca se saberá quantos garotos e garotas entregou de bandeja, e o que aconteceu a cada um deles, graças ao espião de araque do Serviço Nacional de Informações (SNI). O tipo de vigilância relatada por Newton Ishii era frequente nas universidades no período da ditadura militar. Ele, acredita, cumpriu seu “dever” com o Estado que servia na época – a ditadura -, assim como cumpriu agora, servindo à República de Curitiba. Como é preciso seguir servo de alguma causa, Ishii já afirmou que pretende sair candidato a deputado federal nas eleições deste ano pelo partido PEN-Patriotas, ao qual está filiado. Não descarta, quem sabe, começar a carreira política pela Assembleia Legislativa do Paraná, onde fica seu domicílio eleitoral. No Brasil de hoje, Newton Ishii tem um enorme potencial para crescer.