O advogado e jurista Eugênio Aragão é, sem dúvida, uma das pessoas que conhece hoje mais de perto Lula – e que, mesmo com fortes ligações com o ex-presidente, consegue traçar, com independência, um cenário cru e realista da realidade política do país hoje. Não só do cárcere de Lula, amparado nas pás rodantes de moinhos de vento, uma boa metáfora da insanidade dos nossos tempos, mas do que se tornaram nossas instituições. Com Ministério Público, com Justiça Federal, com Supremo, com tudo. Mestre em Direito Internacional pela Universidade de Essex (Inglaterra) e doutor em direito pela Ruhr-Universität Bochum (Alemanha), integrante orgulhoso do Ministério Público Federal de 1987 a 2017 e ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, Eugênio Aragão tem emprestado sua pena e sua consciência política, junto com um grupo de abnegados, a denunciar o atual estado de coisas. Preso há três meses – desde 7 de abril, cumprindo uma pena de 12 anos e um mês de prisão pela condenação no caso do tríplex do Guarujá, um desses moinhos -, Lula, segundo Aragão, representa a chance de redenção em que grande parte do país acredita, mas que não é aceita por um Ministério Público, segundo ele, tomada por uma classe média majoritariamente antipetista – que “age pelo fígado”, e que tornou Moro, Dallagnol seus ídolos e opressores. E por um Supremo Tribunal Federal absolutamente perdido em seus deveres. Quem ousa trincar essa unanimidade, como o desembargador Rogério Favreto, é linchado. Leia – e ouça – essa entrevista marcante.
Ricardo Miranda: O sr. foi uma das pessoas que visitou o presidente Lula mais recentemente no cárcere. Qual o estado de espírito dele?
Eugênio Aragão: Estive com ele segunda-feira (09/07) e me pareceu que ele estava muito bem, com disposição alta. Não se deixou abater por essa situação toda (o veto do TFR-4 à sua liberdade concedida pelo desembargador Rogério Favreto) até porque tem um enorme senso de realismo, sabia que essa iniciativa quase não tinha chance de prosperar. Ele tem muita clareza sobre o que aconteceu e isso facilita as coisas.
Ricardo: O sr. não nota nele nenhum sinal de depressão?
Aragão: Absolutamente não. Em alguns momentos o que a gente tem notado é uma certa bronca mesmo, por tudo o que está tendo que passar, por um fato absolutamente fantasioso. Essa injustiça pela qual ele está passando, isso realmente deixa ele injuriado.
Ricardo: Lula é um preso político?
Aragão: Quem o condenou (Sérgio Moro) tem sentimentos contrários a ele, tem simpatias pelos adversários políticos do Lula, a ponto de se deixar fotografar com eles, é uma pessoa extremamente vaidosa, e isso é um quadro de prevaricação. Ou seja, um juiz que julgou para atender seus sentimentos pessoais. Falar que ali existe um complô político de modo a impedir que Lula seja presidente da República, exige uma leitura macropolítica. Do ponto de vista jurídico, o que a gente vê é uma tremenda de uma prevaricação.
Ricardo: Ainda há realmente alternativas jurídicas?
Aragão: Eu acredito que o Superior Tribunal de Justiça, a hora que tiver a oportunidade de confrontar com os fatos que embasaram essa condenação, quando entrarem no recurso especial, com todas as nulidades praticadas pelo Moro, vão realmente se convencer de que Lula foi vítima de uma atuação “alternativista” da Justiça. Que não tem nada a ver com o devido processo legal. E quando isso ficar mais claro, vamos começar a ver a luz no fim do túnel. Até agora, o STJ só se manifestou sobre questões colaterais, como a liberdade de Lula, mas não sobre o mérito do julgamento. Não é preciso ser um profundo conhecedor do direito penal para saber que as coisas foram feitas de forma muito torta.
Ricardo: O calendário judicial concorre com o calendário político-eleitoral. O sr acredita que Lula não só seja solto, mas que possa concorrer?
Aragão: Existe um timing claro do TRF4 em relação a isso. Ele dormitou por 50 dias nos recursos de Lula não foi atoa. As coisas foram todas calculadas para dificultar a participação dele nas eleições. As coisas andaram muito rápidas até sua prisão. O que eles queriam eram prendê-lo rapidamente. Depois isso, o passo mudou, porque não tinham interesse em interferir na inelegibilidade dele. Quando surgiu uma janela para mudar isso na Segunda Turma (do STF), querem decidir a todo custo agora decidir a inelegibilidade dele. Enquanto isso não for decidido, o Lula continua elegível.
Clique abaixo e ouça a primeira parte da conversa.
Ricardo: Francamente, o sr. acredita que seja possível o presidente Lula concorrer nessas eleições?
Aragão: Olha, esse é um campeonato. Você não tem certeza de que vai ganhar o jogo, mas tem que mandar a bola em direção ao gol. Sabemos que temos adversários extremamente fortes, e na retranca, para impedir esse gol.
Ricardo: Qual sua opinião sobre Moro, Dallagnol, as pessoas que estão do outro lado desse jogo? Elas jogam por uma causa, uma militância..?
Aragão: Eu não vejo militância política forte neles porque essas pessoas são muito superficiais pra isso. Conheço o Dallagnol…são pessoas que não tem certeza ou convicção de nada, a não ser no seu bem estar social. Mas eles fazem parte de uma classe média que, desde o conflito que se estabeleceu no Brasil em torno da destituição da presidente Dilma e do projeto político do PT, tem se estabelecido como uma verdadeira frente com uma bronca quase que visceral com o PT e o Lula. É algo que está dentro de parte de nossa classe média. Essas pessoas não tem proposta política. E, assim, agem muito mais com o fígado do que com a cabeça. Hoje é quase um consenso dentro do Ministério Público de que Lula não merece o destino que espera. Esse apoio a Dallagnol e a Moro é muito forte dentro do MP. Os talvez 20% que não concordam com isso não ousam se manifestar, haja visto o que aconteceu agora com (Rogério) Favreto. Essa máquina de fabricar consensos dentro do Ministério Público é brutal. Ela acaba com reputações, acaba com perspectivas de carreiras das pessoas que resolvem confronta-lo. Um consenso imposto a ferro e fogo autoritário dentro do MP que não permite divergências e não admite a ideia de que Lula ou o PT possam voltar ao governo.
Ricardo: E o discurso do combate à corrupção, pedra de toque da Lava Jato?
Aragão: O discurso do combate à corrupção é essencialmente corporativo, que visa sobretudo a dar mais poder aos atores dessas instituições. E esse poder tem sido muito útil pra eles. O MP tem angariado através desse poder prestígio junto à mídia, junto à sociedade e, na consequência, vantagens remuneratórias muito grandes e outras. O que está no centro dessa dessa discussão são os interesses corporativos.
Ricardo: Em relação ao Supremo, a frase “com Supremo com tudo”, do Romero Jucá, calou fundo. O sr. acredite que o grau de conluio alcance mesmo o Supremo? Eles estão dentro desse jogo?
Aragão: Olha, há quem esteja e já quem não esteja. Mas quem não está, não tem coragem de enfrentar os outros. O Supremo Tribunal Federal se tornou, de uns tempos pra cá, uma instituição extremamente midiática. A mesma mídia que apoia com unhas e dentes o Sérgio Moro e o Ministério Público. Desagradar a esse consenso tem um preço que o Supremo não está querendo pagar. Por conta da imagem que construiu na sociedade. E isso é muito ruim, porque o Supremo se torna refém dessa corrente majoritária, e deixa de olhar as coisas como são.
Ricardo: Muitos ministros do STF foram escolhidos nos anos petistas…
Aragão: Acredito que muito dessa agregação dos atores do Supremo à mídia tem a ver com o processo de recrutamento desses atores. O problema que o PT teve ao longo desses anos em que foi governo é que não estabeleceu nenhum processo racional de escolha desses ministros do Supremo – então, o processo ficou solto. O Partido dos Trabalhadores, a esquerda brasileira, que tinha um protagonismo, não teve a mínima compreensão do que significa o Supremo Tribunal Federal – e quais são os riscos que ele pode representar à governabilidade. Não tendo feito esse levantamento de inteligência, não soube como lidar como as escolhas que encarou. O PT teve a oportunidade de fazer 13 ministros ao todo – e não foi feliz na maioria das escolhas, feitas de forma atabalhoada. Deixou os interessados se apresentarem. Gente que já tinha um elevado potencial de idolatria. Egos extremamente fortes, pessoas com um gás enorme de ambição. E buscaram padrinhos, se cercaram dos áulicos da Corte, daqueles que fazem parte da periferia do sistema. Nessa gincana, os candidatos que faziam questão de aparecer bem na fita tinham uma prática sistemática de destruir eventuais concorrentes. Quem venceu essa batalha não foi a pessoa com melhor conhecimento jurídico e com melhor caráter, mas quem tinha maior resiliência. Uma seleção darwinista. Os mais fortes e vaidosos prevaleceram. Mas a vaidade torna a pessoa frágil. No momento em que arrisca de ficar mal na fita, o vaidoso não faz o que tem que fazer. Então, o Supremo se tornou uma instituição fraca e dividida. Virou um balaio de gatos.
Ricardo: Como o sr. acha que a história contará esse capítulo, Lava Jato, Temer, Moro, Dallagnol, impeachment de Dilma, prisão de Lula, seja lá quem for o eleito?
Aragão: Como um período de profunda crise das instituições, profunda crise existencial do estado brasileiro. Mas só teremos um juízo perfeito do que está acontecendo quando soubermos o que virá depois. Se conseguirmos superar isso em um grande acordo nacional, e o Brasil, com isso, conseguir ter instituições mais legítimas, e melhor aceitas pela sociedade, terá sido uma grande lição. Agora, por outro lado, podemos pegarmos o caminho contrário, do autoritarismo moralista, com com discursos vazios sobre o certo e o errado. Tudo dependerá do que o país fará a partir dessa crise.
Ricardo: Ou seja, depende de quem vai contar essa história no futuro.
Aragão: É, no futuro as pessoas contarão esse capítulo a partir dos resultados dessa crise. Por enquanto, só estamos vendo o túnel, não a luz.
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