Tancredo, o começo da agonia, na igreja Dom Bosco. E o fim, no velório do Palácio Planalto
Há trinta e três anos, o Brasil vivia um dos momentos mais tensos de sua história. Na véspera de 15 março de 1985, dia em que tomaria posse como presidente da República, Tancredo Neves teve de ser internado às pressas no Hospital Distrital de Brasília.
Doutor Tancredo foi eleito pelo voto indireto no colégio eleitoral em 15 de janeiro, poucos dias antes completar 75 anos. Empresário e advogado, ex-deputado, ex-ministro, ex-primeiro-ministro, ex-senador e ex-governador de Minas Gerais, contraiu uma infecção no divertículo. A doença acabou por tirar sua vida, em 21 de abril de 1985, depois de 38 dias de agonia. Em seu lugar, tomou posse o vice José Sarney.
Tantos anos no front da notícia, perdi o número de vezes em que o sofrimento foi o alvo de meu trabalho. Mas tenho certeza que uma das coberturas mais angustiantes foi aquela, dos momentos que precederam a morte do doutor Tancredo. Não somente pelas circunstâncias humanitárias, mas também pelo caráter político de seu significado. Era, aliás, um sentimento de todos os interessados na normalização da vida democrática do País, após vinte e um anos de regime militar. O temor era que a esperança de ver um civil de volta à principal cadeira do Palácio do Planalto também fosse para a UTI. Foi.
Fico cada vez mais impressionado com o poder de premonição que uma fotografia contém. Sempre digo que, na verdade, elas têm maior capacidade de referir-se ao futuro que simplesmente retratar uma mera situação acontecida, ao passado.
Dois dias antes da missa a que comparecera no Santuário Dom Bosco em ação de graças pelo mandato que brevemente se iniciaria, fiz para a Veja — revista para a qual eu trabalhava — essa foto aí, do Doutor Tancredo com as mãos postas sobre o rosto, como quisesse proteger a expressão de dor em sua face.
Tancredo era um dos vários personagens importantes da minha área de cobertura, a seara do poder. Durante duas décadas, praticamente todas as semanas o fotografava. E no ano anterior então mais ainda porque era um dos democratas que subiram com Ulysses Guimarães ao palanque, nos comícios do movimento Diretas-Já.
Eu era bem familiarizado com sua imagem, portanto. Da mesma forma que era familiarizado com a imagem de outros nomes importantes da minha zona cobertura. É assim com os jornalistas que cobrimos todo setor. Mas, naquela tarde-noite na igreja achei estranho seu exagerado silêncio. E, sobretudo, esse gesto de dor, que jamais eu o tinha visto fazer. Não podia imaginar, porém, que representava o início de sua agonia.
Tancredo Neves saiu da igreja para o hospital.
Durante os 38 dias e após cinco cirurgias, terminava o martírio de Tancredo Neves, no Instituto do Coração de São Paulo. Ele foi transferido para lá, depois da internação no Hospital de Base de Brasília. Agora seu corpo estava de volta à Capital do Brasil.
Fiquei realmente triste quando fui ao Planalto cobrir o velório do Doutor Tancredo naquela manhã de 21 de abril de 1985, no segundo andar do palácio. Vi pessoas famosas, ligadas a ele e não postarem-se diante de seu caixão. Reparei também nas pessoas simples, que jamais o tinham visto de perto. Como esse soldado e o menino da foto, ambos desconhecidos e não menos sensibilizados com a perda que o país sofria.
Impressionante a maneira de a história de um país passar pela vida de seus homens e mulheres. Eu estava vendo — e fotografando — Tancredo Neves, enfim, subir a rampa do Planalto, morto.
Interessante, interessante como um fotojornalista, como eu, tem a obrigação de possuir a capacidade de não expressar seu sentimento e perceber de maneira “fria” a emoção das outras pessoas. É como disse a ensaísta americana Susan Sontag em seu livro “Diante da dor dos outros”: cabe-lhe sofrer e fotografar.
Em silêncio.