O Brasil, mesmo com toda sua instabilidade histórica, e escassos períodos democráticos, não reproduz em sua crônica política casos de assassinatos a presidentes. O mundo tem uma infindável galeria de líderes mundiais assassinados, os norte-americanos Abraham Lincoln, James A. Garfield, John F. Kennedy, o egícpio Muhammad Anwar Al Sadat, a primeira-ministra indiana Indira Gandhi, e seu filho, Rajiv Gandhi, o equatoriano Gabriel García Moreno, o afegão Daud Khan, o rei saudita Faiçal bin Abdul Aziz Al Saud – a lista não tem fim. Só a África registra um terço dos magnicídios ocorridos no mundo nos últimos 60 anos.
Estou, obviamente, excluindo teorias conspiratórias nacionais, como quem acha que Getúlio Vargas “foi suicidado”, e as eternas paranoias sobre assassinatos de JK, Jango e Tancredo. Agressões a presidentes também são raras – por alguma razão a ser estudada. Certamente não pelo mito da cordialidade do brasileiro – cada vez mais mito, como constataria hoje, se vivo fosse, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Primeiro presidente civil após a ditadura, José Sarney, marcado pelas tentativas fracassadas de combate à inflação e recessão econômica, viveu seu momento mais difícil em 25 de junho de 1987, durante visita ao Rio de Janeiro. Manifestantes atacaram o ônibus da comitiva presidencial com pedradas e golpes de picaretas, quando deixava o Paço Imperial. Na ação, a janela correspondente à poltrona do presidente foi totalmente estilhaçada, deixando-o ferido nas mãos. O caso foi tratado na época, pela mídia, como um atentado.
Na tarde desta terça, 27, dois ônibus da caravana do ex-presidente Lula foram atingidos por três tiros quando faziam, sem escolta policial, o trajeto entre as cidades de Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul, no Paraná. Ninguém ficou ferido – o que não é atenuante para a gravidade do fato. O delegado da Polícia Civil local, Hélder Lauria, já adiantou que investiga o ataque como disparo de arma de fogo com dano provocado. Nada de tentativa de homicídio, como chegara a propor um colega. Quem disparou ainda não foi identificado. A Secretaria de Segurança Pública do Paraná disse que a organização da caravana não pediu, formalmente, uma escolta.
O PT desmente. No instante em que fake news começavam a ser espalhadas, tentando desmentir os tiros como invenção de petistas, jornalistas que estavam no comboio vieram a público confirmar os fatos. Entre elas Eleonora de Lucena, enviada especial da Folha de S.Paulo, e Clarice Cardoso, coordenadora de conteúdo da agência PT de notícias. “O país precisa reagir. O atentado não foi só contra Lula. O projétil foi contra a democracia. Democratas precisam aprender com a história e formar já uma frente ampla contra o fascismo”, escreveu Eleonora.
Políticos, a começar do presidente Michel Temer – ele afirmou que foi uma “pena” que tenha ocorrido o ataque -, foram quase unânimes, com mais ou menos convicção, em condenar os ataques. Em entrevista à Folha de S.Paulo, no entanto, o presidenciável Geraldo Alckmin afirmou que os petistas estavam “colhendo o que plantaram”. Na mesma linha, mas com linguagem mais a seu caráter, outro presidenciável, o deputado-capitão Jair Bolsonaro afirmou que “Lula quis transformar o Brasil num galinheiro. Agora está colhendo os ovos”.
Alguns dias antes, depois de outros episódios de violência, na passagem do comboio pelo Rio Grande do Sul, a senadora Ana Amélia Lemos (PP) parabenizou os grupos que “botaram para correr” os simpatizantes do ex-presidente. “Atirar ovos, levantar o relho, levantar o rebenque para mostrar o Rio Grande, para mostrar onde estão os gaúchos. Nós os respeitamos. Eles nunca nos respeitaram. E querem receber o nosso respeito. Era só o que faltava”, reagiu a senadora, falando na pré-convenção do PP, na Assembleia Legislativa. Rebenque, por sinal, é um chicote.
As pedras contra o ônibus de Sarney não feriram apenas o então presidente. Resvalaram também em uma democracia recém-instalada. Impopularidade não justifica violência de nenhuma espécie. Nem diferenças políticas. As urnas estão aí para resolver esse problema.
Os tiros contra a caravana de Lula – um deles disparado de uma calibre 380 e os outros de arma de calibre menor, possivelmente 22 – não atingiram apenas a lataria dos ônibus. Perfuraram, de uma forma ainda imprevisível, uma democracia fragilizada em um país onde diferenças políticas são cada vez menos resolvidas com trocas de argumentos e ideias. Descobrir de onde partiram os tiros e identificar seus autores, e motivações, é essencial. Ainda que seja para constatar apenas o que já se sabe, que as balas partiram das armas de dementes. Como disse o escritor Fernando Moraes, para chegar à verdade, se não tiver um bom delegado, basta um bom repórter.