Os sinais estão em toda parte. Fiquei cismado outro dia, no metrô, quando ia para o trabalho (esta é uma história real). Um sujeito muito pálido, que nunca vi na vida, colou no meu ouvido e sussurrou: “Cuidado com nossa democracia”. Achei a frase sofisticada, pensei ter entendido errado, voltei os olhos, mas ele seguiu pelos vagões afora, escolhendo seus ouvidos-confessionários. Fiquei com aquela frase marcada na memória. Alguns dias depois, na rua, indo almoçar, cruzei com um homem maltratado, descalço, andando no meio da rua, como se esperasse por um atropelamento. Falava com um fiapo de voz, mas sem perder o passo: “Os militares voltaram”. Até olhei, alarmado, em volta, procurando alguma batida verde-oliva, embora não estivesse perto de nenhuma comunidade. Não havia ruídos de helicópteros e urutus, nem alguém encapuzado pedindo pra tirar minha foto. E eu, branco, de terno e gravata, certamente seria poupado.
O ressurgimento de campanhas armamentistas, o assanhamento da “bancada da bala” – apesar do genocídio global diário -, a candidatura do capitão-terrorista Bolsonaro e a intervenção no Rio talvez tenham, sim, reativado meu lado alarmista. Achei que havia passado o tempo de ficar lendo as entrelinhas de comunicados militares e buscando escapes golpistas em declarações de estrelados. “Jogada de mestre”, disse Temer, autodefinindo sua intervenção, nomeando um general para pacificar o Rio e criando um ministério da Segurança. Temer estava preocupado em construir um trampolim, mas desenterrou um caixão.
Em dezembro de 2016, quando o general da reserva Rômulo Bini Pereira, ex-chefe do Estado Maior da Defesa, admitiu a intervenção militar como saída para a crise política – em artigo no Estadão -, eu ri. Outros notórios, desterrados nos clubes militares, vez por outra, davam suas botinadas. O general Hamilton Mourão passou para a reserva depois de repetir o mantra incansáveis vezes. Durante uma palestra numa loja maçônica, no ano passado, quando Temer acabara de se safar no Congresso de ser investigado, disse, refletindo seus “companheiros do Alto Comando do Exército”, que chegaria o momento em que as Forças Armadas solucionariam o problema político. Uma vez na reserva, seu papel, anunciou, é coordenar uma frente de candidatos das Forças Armadas para as eleições de 2018. Não sei com o que me preocupo mais.
O general do Exército Walter Souza Braga Netto, o interventor, tem garantido mídia com declarações que deveriam ser burocráticas, mas não são mais. O Rio é um laboratório para o Brasil, disse. “Senhores, no grito não funciona”. Ai, meu Deus, já ouvi esses avisos, eu cresci no governo Figueiredo, Newton Cruz no Comando Militar do Planalto, estudei numa faculdade que tinha como reitor o capitão-de-mar-e-guerra Azevedo. Desculpem, portanto, o “trauma”. Braga Netto deu sua entrevista coletiva com perguntas previamente selecionadas e incomodou-se com o burburinho de jornalistas. Meu velho HD foi até rápido – rebobinou até o não tão distante 17 de dezembro de 1983. “Então desliga essa droga”, ordenou Newton Cruz, empurrando o jornalista Honório Dantas, da Rádio Planalto de Brasília, que ousara perguntar. Ele desligou o gravador durante a fala do general. “Peça desculpas, moleque”. O general não se contentou e quis sua prisão.
Por pouco, bom que se lembre, não se percebeu a “inviabilidade jurídica” dos mandados de busca, apreensão e prisão coletivos, defendidos não só pelos militares, mas pelo ex-comunista e ministro de plantão – ex-Defesa, atual Segurança Pública, futuro sabe-se lá o que – Raul Jungmann. O mesmo Jungmann que, na primeira chance que teve de falar ao público, no discurso de posse no cargo, criticou a classe média, afirmando que, ao mesmo tempo em que ela pede segurança, consome as drogas ilícitas que financiam o crime organizado. Ninguém nega que haja uma extensa rede criminosa que opera como negócio, atendendo a seus mercados de consumo. Mas culpar o cidadão por ser combustível de máquinas criminosas, como disse o coronel da reserva da PM de São Paulo, José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança, não é argumento quando o desafio é criar obstáculos tanto à criminalidade comum como às organizações estruturadas para o crime em larga escala. Se você acha que a solução é lei dura para usuários, não perca tempo com esse articulista.
O novo secretário de Segurança do Rio, general Richard Fernandez Nunes, deu uma entrevista ao Globo no fim de semana, trocando a farda por por um terno – tão civil! – , onde repetiu uma fala frequente do ex-secretário José Mariano Beltrame: é preciso levar ações sociais para as favelas. Prevista na concepção das UPPs, a iniciativa foi abandonada ou sequer começou em muitas comunidades. Será efetivada agora? Pago pra ver – não literalmente porque sou um duro.
Esse fim de semana arrancaram uma faixa do muro da UFRJ, em frente ao antigo Canecão, a campanha “Inverter a intervenção”, que mostrava uma menina, com uniforme escolar e mochila, revistando um militar fardado e com capacete. A foto, inspirada em um grafitti do artista britânico Banksy, impresso num muro de Israel, foi rasgada por homens sem camisa. Nas redes sociais, hostilizaram e ameaçaram a comunidade acadêmica. Enquanto isso, o tráfico da Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, recolocou barricadas retiradas pelas Forças Armadas, após a saída dos militares. Nada mudou, por um lado. Nada será como antes, por outro. A radicalização antidemocrática, no esteio de tudo isso, lançou o país num barril de pólvoras.
Não adianta, meu amor pelo Rio e minha vontade de que tudo dê certo é muito menor que meu apreço pela democracia.