A valsa “Sonho de Artista” foi a primeira composição de Mozart Camargo Guarinieri, quando era ainda um menino de 11 anos, em 1918. Filho de um imigrante italiano com uma pianista de família tradicional de São Paulo, o pequeno Mozart transformou-se ao longo de sua vida em um dos mais importantes mestres da música clássica do Brasil, ao lado de Heitor Villa-Lobos.
Para manter-se na escola, Guarnieri trabalhou na barbearia do pai, em lojas de instrumentos musicais e tocava em bares que alegravam a noite paulistana. Seis anos depois da Semana Modernista de 1922, tornou-se amigo do escritor Mário de Andrade que, além de orientar sua formação intectual, foi seu parceiro na ópera “Pedro Malazartes”.
Durante a II Guerra Mundial, recebeu uma bolsa para estudar em Paris. Lá, adquiriu conhecimento, ganhou prestígio. Voz sempre ouvida e respeitada pelos expoentes da cultura e até da política. O maestro faleceu aos 84 anos e deixou um acervo de composições com mais de 700 peças, entre música de câmara, trilhas sonoras, missas, cantatas, óperas, enfim, obras para piano, canto, coro e orquestra.
Dos tantos que já fotogafei, poucos personagens me impressionaram tanto quanto o maestro Mozart Camargo Guarnieri. Tinha a imagem parecida ao seu jeito original. Caladão, ensimesmado, casmurro. Cheguei ao edifício do seu estúdio de trabalho, na Rua Pamplona, cinco minutos antes da hora marcada. O porteiro tinha nas mãos um maço de cartas para o maestro. E eram muitas. Tive a curiosidade de ver os remetentes. Correspondências de vários lugares do Brasil, Argentina, Chile, Estados Unidos, Europa. Consultas, portfólios, publicações.
Além de mim, uma jovem e bela estudante de piano o aguardava. Tinha hora marcada para aula de aperfeiçoamento musical. Linda, branquelinha. Lembrava Nana Mouskouri, a cantora grega de rostinho largo.
Ele chegou às dez em ponto, como havia combinado, naquela enevoada manhã de uma sexta-feira de dezembro de 1991. Trazia duas rosas. As comprara da florista, ao desembarcar do táxi. Uma das rosas, deu-a à bela “Mouskouri”. A segunda, presenteou-a à mulher da limpeza do elevador.
No estúdio do maestro Guarnieri, partituras espalhadas pelas mesas, livros abertos, alguns com textos sublinhados a lápis. Acho que lia vários ao mesmo tempo. Sobre um dos sofás, um mapa de Paris, bem gasto. Via-se que fora bastante consultado. Ao lado, uma garrafa de Courvoisier e algumas taças para conhaque.
Deu uma tarefa para a elegante aluna. Ela repetia várias vezes a etapa de uma pauta musical posta à sua frente. Enquanto eu escolhia onde colocaria o pano vermelho que está presente em todas as fotos do livro “Senhoras e Senhoras” ele deu uma rápida olhada na primeira página da Folha e do Estadão. Deteve-se em três notícias que os jornais traziam: corrupção, a criminalidade e o sucesso de uma dupla de cantores sertaneja. Caminhou até a janela, olhou para imensidão de prédios de São Paulo e disse:
– Impossível compreender o mundo de hoje. Há desrespeito em todos os lugares, governos ruins. Incompreensível como as pessoas não fazem de sua vida instrumento para o bem. Até a música, que é a melhor expressão de sentimento do espírito dos homens, está contaminada e obtém sucesso pela má qualidae. E a fama, que deveria ser algo salutar, virou mercadoria para ser dada aos ladrões.
Orlando Brito