Utopia é o espaço idílico onde se congregam almas nefelibatas, com o propósito de planejar a construção de sociedade imaginária, fruto mágico da vontade. A imaginação utópica se caracteriza pela alienação. Trabalha alheia à realidade e indiferente ao que de fato acontece. Deixa-se embriagar pelas palavras.
É nas ciências políticas que o pensamento utópico tem se revelado prolífico e influente. Políticos, juristas, professores universitários, jornalistas, se dedicam à formulação de teorias sobre o modelo ideal de governo, onde bastaria o simples desejo para fazer prevalecerem os valores da justiça, da honestidade, da beleza, da igualdade. São jardineiros cultivando flores coloridas, mas estéreis e incapazes de frutificar.
Escreveu Edward Hallet Carr, ao dissertar sobre o papel da utopia, que, “quando a mente humana começa a se exercitar em algum campo novo, ocorre um estágio inicial em que o elemento do desejo ou objetivo é extremamente forte, e a inclinação para a análise dos fatos ou de meios é fraca ou inexistente”. Na fase inicial das ciências políticas, acrescenta o historiador inglês, “os pesquisadores prestarão pouca atenção aos “fatos” existentes ou à análise da causa e efeito, mas devotar-se-ão à elaboração de projetos visionários para a consecução dos fins que têm em vista – projetos cuja simplicidade e perfeição lhes garantem uma atração fácil e universal” (Vinte Anos de Crise – 1919-1939. Ed. UNB, Brasília, DF, 1981, pág. 18).
Foram utópicos Saint-Simon, Fourier, Robert Owen, projetistas de “comunidades ideais, nas quais homens de todas as classes iriam viver juntos em amizade, dividindo os frutos do seu trabalho na proporção das suas necessidades” (EHC, pág. 20).
Oliveira Vianna, citando Joaquim Nabuco, tratou da presença do pensamento utópico na legislação brasileira: “São eles (os utópicos) os que fazem do grave problema da organização política do Brasil, ‘uma pura arte de construção no vácuo’. A base são as teses – e não os fatos; o material as ideias – e não os homens; a situação o mundo – e não o país; os habitantes as gerações futuras – e não as atuais” (Instituições Políticas Brasileiras, Record Cultural, SP, 1974, vol. II, pág. 24).
Exemplo clássico de construção no vácuo é a Constituição de 1988. Sob o domínio da utopia, os constituintes proclamaram, sem modéstia e constrangimento, que se reuniram em Assembleia Nacional Constituinte “para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…..”, como se lê no Preâmbulo.
Passados 32 anos os resultados da vontade utópica são conhecidos e lamentáveis. A miséria, o desemprego, a insegurança jurídica, a instabilidade política se aprofundaram, o Estado está mais para absolutista do que para democrático, com a vida política dominada pela tríade sinistra: malversação de dinheiro público, corrupção e impunidade.
Além da organização política construída no vácuo, temos o problema do plágio legislativo. Os juristas apreciam importar doutrina e legislação alienígena para solo brasileiro. Ignoram que os países europeus, tomados como modelo, são desenvolvidos, relativamente homogêneos, cultos, com população estabilizada, cujos contrastes não se equiparam aos que presenciamos entre o sul, sudeste, centro-oeste, norte e nordeste.
Sociólogos, cientistas políticos e juristas, desprezam as contradições internas, quando tomam como modelos instituições francesas, espanholas, italianas, alemãs para aplicá-las ao Brasil, como se o povo fosse massa inerme, sem passado histórico, destituído de vontade.
Conhecem a Alemanha, França, Inglaterra, mas jamais tiverem interesse em desvendar o semiárido nordestino, o deserto verde amazônico, as fronteiras com vizinhos de língua espanhola. Acreditam ser tudo uma coisa só e que a legislação uniforme, imposta de cima para baixo, será obedecida nas diferentes camadas sociais. Ignoram que entre o Triângulo Mineiro e o Vale do Jequitinhonha, ou a Serra Gaúcha e a bacia do Tapajós há mais discrepâncias do que em toda a Europa.
Para legislar é obrigatório conhecer e compreender como o povo vive e reage, quais as condições concretas da economia e o que fazer para corrigir o que estiver errado. É impossível ignorar que, neste século 21, como resultado de legislações erradas, continuamos subdesenvolvidos e atrasados.
— Almir Pazzianotto Pinto foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho