O Olavo de Carvalho que conheci era outro

Neste relato, o autor conta detalhes da sua convivência com o guru do bolsonarismo, no início da década de 70, no Jornal da Tarde, e surpreende ao revelar uma personalidade completamente diferente do Olavo que os brasileiros conheceram nos últimos anos.

Olavo de Carvalho era uma pessoa muito diferente da que se tornaria quando convivi com ele na redação do Jornal da Tarde, há muito tempo. Éramos vizinhos de local de trabalho na seção Internacional do extinto JT. A anos-luz de guru do bolsonarismo, Olavo era contrário ao regime militar de 1964 e, suprema ironia, suas atenções intelectuais se concentravam em alguém que se declarava libertário radical e antifascista, a ponto de ter sido, em 1934, um dos fundadores de um Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas (CVIA) na França:.o escritor, jornalista e filósofo Alain, pseudônimo de Emile Auguste-Chartier (1868-1951).

Emile Auguste-Chartier

Olavo era um sujeito simpático e bem-humorado que, acreditem, não falava palavrões. Desenhava bem, e traçou uma divertida caricatura de um personagem fictício que inventou: Olaus Schneider, senador demagogo, hipócrita e corrupto da Arena, o partido do regime militar, pelo Estado de Santa Catarina. O desenho mostrava um gorducho de gravata e paletó desabotoado sempre sorridente, calvo no alto da cabeça e com basta cabeleira crespa nas laterais.

Olavo e Bolsonaro em Washington

Desleixado na aparência, Olavo não se importava de exibir um sorrido a que faltava meia dúzia de dentes – espaços que foram devidamente preenchidos pelo Olavo de Carvalho guru dos Bolsonaro. Fumava quase obsessivamente, de vez em quando acendendo um cigarro no outro. Durante ano e meio de convivência, entre 1973 e 1974, não me lembro de ele jamais ter-se dito “filósofo” ou haver demonstrado interesse pela astrologia, atividade a que mais tarde se dedicaria, inclusive como titular de uma escola sobre o tema.

Guardei muito bem na memória um episódio revelador de sua postura política de então: uma carta crítica que escreveu ao deposto ditador de direita de Portugal, Marcelo Caetano, que chegou como exilado no Brasil a 20 de maio de 1974, depois de derrubado pela Revolução dos Cravos de 25 de abril.

Ex primeiro-ministro de Portugal Marcello Caetano

O ex-“primeiro-ministro” de Portugal iria viver no Rio de Janeiro até sua morte, em 1980, mas naqueles dias estava hospedado no hotel Hilton São Paulo, a poucos metros da então sede do Estadão e do Jornal da Tarde, no Centro de São Paulo. Olavo conseguiu que um dos mensageiros da Redação levasse a carta pessoalmente à portaria do hotel.

Nela, cujo texto me mostrou, ele ironizava a política supostamente “reformista” de Caetano em relação à feroz, interminável ditadura que herdou de Antonio de Oliveira Salazar (1932-1968), bem como a gestão cruel e escravocrata das colônias portuguesas na África – Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde –, eufemisticamente chamadas pelo salazarismo de “territórios ultramarinos de Portugal”. E terminava dizendo que, a continuar acreditando em tais ficções, Caetano corria o risco de “enlouquecer à força de mentir-se”.

Olavo de Carvalho

Acredito que, se dissessem a qualquer pessoa da Redação naquela época, que Olavo se transformaria no fanático que inundou de ideias obscurantistas diversos livros best-seller, tomou de assalto as redes sociais e contribuiu decisivamente para fazer a cabeça de monstros que nos governam, ninguém acreditaria.

 

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