Hoje, como ontem, o Rio amanheceu melancólico. A chuva traz essa sensação ao carioca. Habituado a rir de janeiro a janeiro, nestes dias, costumam ficar mais silenciosos. Até os pássaros cantam menos.
Amanheceu com densas nuvens no horizonte, triste, “cabisbaixo”, macambúzio talvez. Essa melancolia se dá pela falta que fará, a Cidade Maravilhosa, ao Brasil, a Portugal e ao Mundo, o fadista Carlos do Carmo, uma das maiores representações do gênero de todos os tempos. Falecido no primeiro dia deste ano que se inicia, em Lisboa, cidade que mais cantou e emocionou. Nasceu no Bairro da Bica, coração pulsante do burgo, encimada e protegida pelo Castelo de São Jorge, “…Lisboa, velha cidade,/Cheia de encanto e beleza!/Sempre a sorrir tão formosa,/E no vestir sempre airosa…”. Carmo, com toda certeza, a descreveu como ninguém em versos melódicos, saudosos e cálidos, tinha na voz poesia, no olhar doçura melancólica. Calou-se exatamente nela.
Tinha o fado nas veias e a arte no coração e deu a ele um charme todo especial. De sua mãe, Lucília do Carmo, também fadista, herdou a voz, o lamento e o sentimento ao cantar. Do pai, o livreiro Alfredo Almeida, recebeu o dom de divulgar a poesia portuguesa e seus maiores e mais aclamados poetas. De ambos, a oportunidade de mostrar seu talento na casa de fados de sua propriedade, ‘O Faia’, no Bairro Alto, em Lisboa, fundada em 1947 e o charme imenso, e que charme. Rendeu-lhe ‘O Charmoso’. Lá deu seus primeiros acordes vocais junto às guitarras, até iniciar sua talentosa e especial carreira aos 25 anos. Foi para Lisboa, para ‘Portucale’, para o mundo, onde se apresentou nas melhores casas – Olympia, Royal Albert Hall, Ópera de Frankfurt, inclusive no Canecão -, junto a Amália Rodrigues, a maior representatividade do fado português de todos os tempos.
Cantou Alfama – que jamais será a mesma sem ele -, a Mouraria da velha, amada e lamentosa Severa. Ali deixava sua alma, via as procissões a passar, ouvia os cantares maviosos dos rouxinóis como se fora a guitarra a soluçar. Cantou as gaivotas trazidas ao céu de Lisboa, seu coração batia perfeito em seu peito, nessa mão onde cabia seu mais que perfeito coração. Cantou, cantou. Transformou o fado, se tornando o maior representante, na década de 1970, do “Fado Novo”, com marcantes inovações musicais sob influências de seus primorosos gostos musicais. Bebeu na fonte da Bossa Nova, de Elis Regina, Sinatra e Jacques Brel.
“Um Homem na Cidade”, lançado em 1977 é seu mais representativo trabalho nesta mudança. A faixa título, homônima ao álbum, em poema de Ary dos Santos, traz a baila a Revolução dos Cravos aos 25 de abril: “Nas minhas mãos a madrugada/Abriu a flor de Abril também/A flor sem medo perfumada/Com o aroma que o mar tem/Flor de Lisboa bem amada/Que mal me quis, que me quer bem.”.
Outros sucessos marcantes, ficarão para sempre impressos em calhas da roda, corações apaixonados, deuses infinitos em princípio e fim: “Lisboa Menina e Moça”, “No Teu Poema”, por José Luís Tinoco – “No teu poema/Existe um verso em branco e sem medida/Um corpo que respira, um céu aberto/Janela debruçada para a vida…”, “Por Morrer uma Andorinha”, “Canoas do Tejo”, “Loucura (Sou do fado)”, “Estranha Forma de Vida”, “Bairro Alto”, “Um Homem na Cidade”, “Partir é Morrer um Pouco”, “O Homem das Castanhas”, “Gaivota”… ufa! a lista é infindável.
Despediu-se dos palcos em novembro de 2019. Obviamente em Lisboa, no magnífico Coliseu dos Recreios, no São José, aos 57 anos de carreira e legado. Atuou como embaixador a candidatura do Fado a ‘Patrimônio Imaterial da Humanidade’, e desempenhou um “papel fundamental na divulgação dos maiores poetas portugueses”, destacou o júri do Prêmio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural.
O álbum inédito e agora derradeiro, “E Ainda?”, será lançado este ano pela Universal Music. Se contemporâneos fossem, diria que Pessoa versou para ele: “Quem te sagrou criou-te português./Do mar e nós em ti nos deu sinal./Cumpriu-se o mar, e o Império se desfez./Senhor, falta cumprir-se Portugal!…”.
Pródigo disse: “Fiz este meu caminho, que não foi das pedras, mas que considero um caminho sempre saudável e que me levou sempre a ter uma perspectiva de ser solidário com os meus companheiros. Não me recordo de ter feito uma sacanice a um colega de profissão. E, para esta nova geração, estou de braços abertos”. E esteve.
Hoje, ainda assim, se fizeram presentes, por entre a neblina, as fragatas que ensaiaram seu balé, com açúcar e afeto sobre a Guanabara, muito provavelmente ao som de “Gaivota”.
O Rio é assim, vive n’alma da gente e, como escreveu Millôr Fernandes: “Olha,/Entre um pingo e outro/A chuva não molha.” portanto, andemos entre os pingos, mas, hoje em especial, o Rio está “Sou do fado/Como sei/Vivo um poema cantado/De um fado que eu inventei//A falar/Não posso dar-me/Mas ponho a alma a cantar/E as almas sabem escutar-me…”
O firmamento está em festa, chora de felicidade e lamentos. Os anjos abandonaram as harpas; agora dedilham guitarras.
Para já, o céu é poema!
— Carlos Monteiro é Jornalista