Na hora em que o Brasil vai novamente às urnas, lembrei-me dessa foto aí, aparentemente tão sem importância, que fiz em 1976. Tal como hoje, naquele ano o eleitorado ia às urnas para escolher seus vereadores e prefeitos. Bom lembrar que o povo brasileiro, governado pelo regime militar, não votava para presidente, conquista que somente se deu em 1989, após o movimento Diretas-Já, liderado por Ulysses Guimarães e que tomou as ruas do país.
As eleições municipais de 76 ficaram marcadas pelas restrições impostas pela Lei Falcão. Ganhou esse nome por ter sido idealizada pelo então ministro da Justiça do governo Ernesto Geisel, Armando Falcão. Era um conjunto de normas que definia critérios para a campanha. Limitava a manifestação dos canditados, com o temor de possíveis críticas ao regime militar. Era também, previa-se, maneira de garantir a vitória da Arena — partido que apoiava incondicionalmente o governo — sobre o MDB, de oposição. E não deu outra.
Mas trazia uma inovação: a televisão, que passava a mostrar e falar de eleição. Entretanto, no horário permitido pelo governo e fiscalizado pelo TSE, só era consentido aos candidatos a prefeito e vereador mencionar a legenda do partido, um brevíssimo histórico do concorrente e seu número ao lado da foto 3×4.
Era precaução que o Palácio Planalto tomava para evitar resultado surpreendente, idêntico ao da eleição de dois anos antes, em 1974, quando o MDB elegeu 16 das 22 vagas em disputa para o Senado. Entre os vendecores, estavam por exemplo, Itamar Franco, Saturnino Braga, Paulo Brossard e Marcos Freire. Porém, na dúvida sobre a eficiência da propaganda eletrônica, os candidatos acreditavam mesmo era na força de sua própria voz, por menores e menos sofisticados que fossem os comícios, como esse, noturno. Confiavam no contato pessoal com o eleitor nas ruas, no olho-no-olho. No aperto de mão. Naquele tempo não havia o fenômeno assustador da pandemia da Covid.
Fui ao Amazonas cobrir para o jornal em que eu trabalha à época, O Globo, a primeira eleição municipal regulamentada pela Lei Falcão. Cobrindo o dia-a-dia em Brasília, na pompa do Palácio Planalto, eu sabia que não iria encontrar no interior o mesmo capricho das cerimônias que costumeiramente eu fotografava na Capital Federal. E era justamente esta a idéia: captar e repassar aos leitores cenas do clima eleitoral de uma longínqua cidadezinha do interior.
E lá, em Manacapuru, o palanque era feito com restos de caixotes de madeira e só cabiam cinco pessoas. Os candidatos se revezavam no sobe-e-desce. A iluminá-los, duas – isso, duas – lâmpadas disputadas pelas mariposas. O som do alto-falante mal e mal alcançava o ouvido dos trinta ou quarenta presentes.
E o que tem essa foto aí, que fiz na pequena e singela Manacapuru em 1976 com a atualidade?
Com o passar do tempo, Manacapuru mudou, o Brasil mudou. O mundo mudou. Eram somente dois partidos, a Arena e o MDB. Hoje são mais de trinta. E, claro, o eleitorado também mudou. Tudo modernizou. Deixamos de depositar nos sacos de lona as cédulas de papel. Veio o dinâmico sistema das urnas eletrônicas. O eleitor que não sabia escrever sequer o próprio nome tinha que sujar no dedo polegar numa almofada de tinta, como fosse carimbo, para comprovar para posterior averiguação sua veradeira identidade. Esse método arcaico foi substituido pela instantaneidade da biometria digital.
Surgiram as pesquisas, os marketeiros, os debates entre candidatos. Aliás, agora o número de mulheres candidatas é talvez maior que o de homens. Em 2020, são quase 150 milhões de votantes que têm um imenso parque de comunicação para se informar sobre os concorrentes. Naquela época, a existência da Internet era algo inimaginável. Hoje estão aí as redes sociais que deram a cada ser vivente independência para escolher o que bem desejar ler, ouvir e ver. Com a telefonia celular, têm o Twitter, Whats App, Facebook, Instagram, e-mail, Youtube etc para ter a liberdade de dizer, opinar, criticar. E decidir.
Pois é. Depois dessa foto na singela e distante Manacapuru, lá no longínquo ano de 1976, subi em mil palanques nas campanhas presidenciais, para governador, senador, deputado, prefeito e vereador. Fotografei carreatas, passeatas, performances, grandes comícios, mega-comícios, sofisticados comícios, showmícios, milionários comícios, cheios de layouts arrojados, displays, jingles, slogans e back-lights. E, enfim, agora temos os tais palanques eletrônicos. Mas esse aí da foto nunca me saiu da lembrança. Tão mambembe e tão simbólico.
OrlandoBrito