Véi, sou brasiliense

Com 62 anos, Brasília assiste à incessante sucessão de gerações, que brotam em suas asas e satélites. Para os que, como a autora, tiveram a alma arrebatada pela capital, conviveu com os candangos, brincou na poeira dos redemoinhos, dançou ao som das bandas de rock, Brasília é orgulho e esperança

A Torre de TV, monumento da área central de Brasília, é um dos principais pontos de lazer da capital da República - Foto: Joel Rodrigues

Toda vez que vou a São Paulo, Rio de Janeiro ou em qualquer outra cidade, por mais moderna e cosmopolita que ela seja, sinto falta do espaço aberto de minha Brasília. Sim, a minha Brasília não tem fios à mostra, os espaços abertos são muitos e grandes, possibilitando que se veja o céu mais lindo que jamais contemplei. Niemeyer e Lúcio Costa transformaram a capital em uma grande obra de arte.

O lago Paranoá e os ipês multicoloridos a florir compõem parte da paisagem de Brasília – Foto: Orlando Brito

Sou Brasiliense, filha de pioneiro. Meu pai era paraibano que chegou aqui carregando uma mala com poucos pertences e muita esperança. Falava com orgulho de cada prédio que ajudou a construir, cada quadra que viu nascer. Falava de uma época distante, em que não se imaginava a valorização imobiliária da cidade. Ele tinha vergonha de dizer que rejeitou um terreno às margens do Lago do Paranoá, temendo ter que conviver com vizinhos incômodos, os mosquitos. Depois, quando passava pelo Lago Sul já supervalorizado, dizia: “Sou feliz no Guará”.

A diversão das crianças de Brasília nos anos 70 não era ir ao shopping e nem à praia. Nos divertíamos nas ondas de poeira dos redemoinhos que se formavam nos grandes espaços abertos. Depois da missa aos domingos, as pessoas passeavam na Avenida W3. Existiam poucas escolas particulares e públicas, não era como hoje, em que é possível escolher.

Rota Brasília Capital do Rock conta a história de bandas brasilienses, como a Legião Urbana – Foto: Ricardo Junqueira / Reprodução

O tempo passou e Brasília tornou-se a capital do rock. Aborto Elétrico, Plebe Rude, Capital Inicial e, claro, Legião Urbana. Quem não é daqui diz que veneramos essas bandas para sempre. Mas não é isso. Quem viveu esse movimento musical se reconhece nele, e não dá para se dissociar da própria história, é isso. Expressões como véi, camelo, são nossas, gírias brasilienses.

Brasília foi crescendo e atraindo atenção e novos moradores. Quanto aos novos moradores, posso dizer que morro de ciúmes da minha cidade. Isso mesmo, ciúmes. Não querer dividir ela com ninguém. Medo de que não seja cuidada e amada por quem escolhe vir para cá.

O Eixão do Lazer é diversão semanal dos brasilienses – Foto: Orlando Brito

Hoje tenho uma filha de 19 anos, brasiliense raiz. Ela, como todo mundo, quer viajar, correr mundo, mas sempre diz que sua casa será na Asa Norte, olhando para o Eixão (outra expressão nossa). Ela estuda na bela UnB, universidade cheia de história, fala véi adoidado e adora a organização espacial da cidade. Brasília só podia dar certo, pois foi construída por pessoas que trouxeram para cá toda sua esperança. E nós, filhos de Brasília, partimos do zero. Criamos sotaques, comidas, brincadeiras e cultura. Demos alma a Brasília.

* Ana Catarina Lima é jornalista

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