Tendo passado a primeira metade dos meus 71 anos nos Estados Unidos e a última no Brasil, uma sociedade onde minha assimilação tem sido parcial, na melhor das hipóteses, não deveria surpreender que me sinta dividido. É como se estivesse montado numa corda bamba equatorial com um pé plantado em cada país.
Quando os brasileiros descobrem que eu vivo em seu país há mais de três décadas, a maior parte do tempo casado com uma piauiense com dois filhos, costumam dizer: “Ah, então você já é brasileiro”. Talvez, mais do que qualquer outro povo, o brasileiro faz com que o estrangeiro sinta-se em casa.
Essa inclusividade explica por que algumas pessoas que viajam para esse destino nunca voltam. Isso também explica por que o Brasil já foi comparado ao Triângulo das Bermudas (uma área no mar do Caribe onde barcos e aviões desaparecem), mas sem a queda da aeronave.
Quando desembarquei no Rio de Janeiro, onde nunca antes tinha estado, a cidade virou meu novo lar porque me acolheu de braços abertos. Mas, compreendi que sempre seria um membro periférico dessa sociedade, um “neném cultural” (nem totalmente americano, nem inteiramente brasileiro).
É precisamente isso que me dá condições de avaliar os dois países de um ponto de vista forasteiro. Mesmo assim, venho tentando me abrasileirar desde minha chegada. Se não, para que trocar de cultura? É por isso que comecei a assimilar as manhas e os truques que achei atraentes aqui e a rejeitar os demais.
Mais tarde, abandonei algumas das carioquices que tinha adquirido – dirigir como se estivesse em busca da morte, chegar o mais tarde possível aos encontros e me tornar um craque em falsos convites, do tipo “apareça em casa”.
Também não consegui me transformar em um “homem cordial” que se esquiva de marcar encontros chatos com um “vamos ver”, “se der”, “pode ser”, “vamos, um dia desses,” ou o clássico “eu te ligo”. Até hoje, o meu traço mais americano é minha capacidade de ser direto e, quando necessário, usar a palavra “não”, uma declaração que os brasileiros preferem evitar.
Algumas das minhas assimilações não exigiram esforço ou foram inconscientes. Assim que cheguei ao Rio, troquei minhas meias 3/4 brancas, tênis e bermudas por chinelos e sunga. E comecei a usar camisas para fora das calças. Não levou muito tempo para eu começar a sonhar em português, ainda que, nesses sonhos, eu fale com sotaque.
A mania nacional do futebol deitou raízes em mim. Poucas pessoas se alegram mais que eu quando a seleção da Argentina perde. E quando perde para nossa seleção, essa felicidade vira eufórica ou até histérica. O que poderia ser mais brasileiro que isso?
Pouco a pouco, também assimilei algo da natureza generosa deste povo. Basta alguém parar numa estrada qualquer com um pneu furado e imediatamente aparecem pessoas de todos os lados, loucas para ajudar em troca de nada. Por isso, a gentileza nacional de quebrar um galho ou dar um jeito para ajudar alguém virou uma praxe prazerosa para mim.
Também aprendi a arte de pechinchar – com camelôs, feirantes, biscateiros e mecânicos de carro – porque é praxe aqui. E se eu não regatear o preço astronômico do serviço autorizado de geladeiras e máquinas e máquinas de lavar, me sinto vítima de um “assalto autorizado”.
O triunvirato nacional da corrupção, impunidade e desigualdade econômica continua a me desanimar. E a tendência a tirar vantagens dúbias e tornar a praça pública uma zorra nunca foi minha praia. Nos aeroportos do Rio, recuso-me a pegar táxis que procuram passageiros fora da fila ou a deixar as cabines dos banheiros imundos ainda mais sujas. E não uso as calçadas como depósito de carros, lixo e cocô de cachorro.
Não me surpreende que meus sentimentos anti-ianque tenham crescido desde que eu cheguei ao Brasil. É mais fácil sentir a prepotência americana — seja cultural, econômica, política — estando em um país sufocado por ela. Mas, ao ver as imagens do 11 de setembro, não desabafei com um “bem feito!” como alguns brasileiros; eu chorei à beça. Afinal, era a minha pátria e eram meus conterrâneos que estavam em chamas.
Gosto de ser o híbrido que me tornei, um americano abrasileirado. O ianque em mim ainda me faz contar dinheiro em inglês. Mas meu brazuka interior pontua um desabafo com um “pô!” explosivo.
Se eu quisesse me abrasileirar ainda mais, só conseguiria acrescentar alguns detalhes cosméticos, como suavizar meu sotaque ou reproduzir certos gestos típicos, como segurar a pontinha da orelha para elogiar um prato saboroso. Isso seria mais uma imitação que uma assimilação. E recuso segurar um sanduíche (ou qualquer lanche) com um guardanapo.
Eu vim para o Rio porque é onde acabam os fugitivos dos filmes de Hollywood. E Jobim, Vinicius e as cenas de Carnaval no filme Orfeu Negro foram o canto de sereia que me atraiu, com promessas de uma cidade com mais ginga e malemolência do que meu eu puritano poderia imaginar.
Se sinto saudades? Sim… do Rio quando estou nos Estado Unidos, visitando minha irmã em São Francisco e meus amigos em Nova York.
Se um dia eu voltarei do meu exílio voluntário? Eu acho que não. Meu coração é brasileiro demais para adaptar-se facilmente a essa mudança de endereço. Para quê trocar o abraço brasileiro pelo aperto de mão americano? Para quê trocar uma cultura descontraída e generosa por uma cultura imediatista e apressada do “tempo é dinheiro”, ou seja onde o trabalho árduo aumenta o poder de compra e o sentimento de superioridade?
Ainda resisto a alguns hábitos brasileiros. Mas, enquanto alguns americanos vêm minha pátria adotada como “aquela bagunça tropical”, para mim, ela é uma sociedade calorosa e, às vezes, caótica e anárquica. Ou, como bem disse Jobim: “Morar nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda; morar no Brasil é uma merda, mas é bom”.
— Michael Kepp é jornalista norte-americano radicado há 38 anos no Brasil, autor de ‘Tropeços nos trópicos – crônicas de um gringo brasileiro” (ed. Record) e ‘Um pé em cada país’ (Tomo Editorial, 2015)