Sobre a leveza das crianças e o peso de certos adultos

Na minha pré-adolescência a “hora do recreio”, na escola, era permeada por dois eventos: o pique-pega onde suávamos em bicas deixando a velha camisa de opaline branca com o célebre “EP”, em forma de triângulo, bordado na cor azul-marinho no bolso, uniforme das escolas públicas do Rio de Janeiro e, depois de exaustos e exauridos, a ‘roda da bobagem’ à sombra de uma mangueira centenária. Ali nos divertíamos cantando paródias, criando aforismas, colocando apelidos uns nos outros ou nos desavisados de fora da turma – alguns politicamente incorretos de fato -, ou simplesmente sacaneando uns aos outros. Podíamos, éramos crianças dos anos 1970. Era pura diversão. Gargalhávamos.

Não tinha essa de bullying, não fazíamos troça com o social-econômico dos colegas, talvez por termos tido a bênção de morarmos em Santa Teresa, o bairro mais democrático da Cidade Maravilhosa de todos os tempos. Um bando de meninos – é verdade; fazíamos o clube do Bolinha e da Luluzinha – inventando, criando e se divertindo.

Além dos papos, criávamos campeonatos de cuspe e mijada a distância, pedra ao alvo, para derrubar as mangas ‘carlotinhas’ e ‘batucum’ que consistia em derrubar a mala – sim usávamos malas – do colega com uma pancada forte efetivada com a mão sobre ela. Nada mais infantil.

As músicas, parodiadas ou criadas, eram verdadeiras pérolas. “- Coelhinho se eu fosse como tu, tirava a mão do bolso e botava a mão no coelhinho se eu…”. Outra, de uma sensibilidade incrível, recitada com ênfase e pompa: “No cume daquela serra/Plantei uma roseira/O mato no cume cresce/A rosa no cume cheira…”. Pura poesia.

A romântica beleza do Rio – Foto Carlos Monteiro

Já no regresso à casa, pingentes nos estribos dos bondes na carona nossa de cada dia, nunca combinada com o trocador, cantávamos em uníssono: “ô, ô, ô, ô, pegaram o motorneiro com a mulher do trocador…”, paródia de “Palmas no portão”. Tínhamos um trocador enfurecido e um motorneiro que achava a maior graça, pudera! Cantávamos “O Avião”, “Constantino tinha uma Flauta”, “Chora Bananeira” e “Hora do Lanche”; paródias permeadas de bobagens e sonoros palavrões. Podíamos, éramos crianças dos anos 1970. Era pura diversão. Gargalhávamos.

Aforismos, e nem sabíamos que eram ditos, afloravam: “deixa estar jacaré, um dia hás de nadar na lama”, “em rio de piranha jacaré nada de costas”, “mais quente que fogareiro Jacaré” e as piadinhas infames: “Jacaré no seco anda?”, parafraseando “O Síndico” ou “O Maluco Beleza”, “mulé com mulé dá jacaré?”, “três mocinhas interessantes: cobra, jacaré e elefante”, “jacaré se defende com o rabo”. Quanta besteira (com todo o respeito que imponho às bestas), quanta bobagem, quanta infantilidade.

Os apelidos eram animalescos: Papagaio, Bicanco, Arara, Juba, Hiena, Cão sarnento, Cão danado, Porquinho, Mosca, Abelha, Mosca, Formiga, Girafa… imaginem o porquê de cada um deles.

Jair Bolsonaro, gestão desastrosa na questão da pandemia – Foto Orlando Brito

Dia desses, me deparo com uma declaração do chefe de estado brasileiro, comentando que, quem tomar a vacina ou imunizante para o Coronavírus, pode ter uma mutação para jacaré. Imediatamente voltei no tempo, voltei a velha mangueira que ainda sombreia aquele pátio, voltei a infância… porque era exatamente isso que fazíamos. Falávamos bobagens, beirávamos ao improvável, praticávamos nossa idade, nossa tacanhez, ignorância infantil, insensatez ‘acriançada’. Podíamos, éramos crianças dos anos 1970. Era pura diversão. Gargalhávamos. Tínhamos, em média, 12 anos, bebíamos muita água para ganhar o campeonato.

Ríamos do inimaginável enquanto nos lambuzávamos com aquelas pequenas mangas, derrubadas à pedradas, apelidávamos colegas e professores, dizíamos que se algo não fosse ou fosse realizado o sujeito viraria um bicho que estipulávamos – jacarés eram os mais frequentes -, tínhamos 12 anos, éramos inconsequentes, éramos crianças, irresponsáveis diante de nossa idade.

Incêndio florestal na Amazônia – Foto Daniel Beltrá/Greenpeace

A vacina não criará, ela já criou uma ‘mutação genética’, há tempos, talvez com as queimadas do Pantanal ou da Amazônia, uma espécie que já nasce ameaçada por sua ignorância, insensatez, ‘in-solidariedade’ e lucidez. Se trata do Jacaré-do-papo-furado-verde-e-amarelo. Negacionista, usuário de antolhos virtuais, misógino, xenófobo, reacionário, preconceituoso, fascista e racista.

A vacina ou o imunizante não tem pátria, elas têm simplesmente a salvação. Temos ansiedade, estamos angustiados, a pressa se justifica, tem que ‘dar bola’ sim, há que ter amor ao povo! Precisamos sobreviver!

Víamos “Wally Gator” nos primórdios da TV no Brasil. O jacaré boa-praça. Era engraçado e divertido. Valia a ‘mutação’. Antropomórfico. Éramos crianças dos anos 1970. Era pura diversão. Gargalhávamos.

O negacionismo não tem graça, a doença representa vidas humanas. Vidas importam! Não vira jacaré. Não é para gargalhar, é para se cuidar! Não é país de maricas. É um país de sensatos!

Não ria, chore, copiosamente.

Chore à pátria mãe gentil!

— Carlos Monteiro é Jornalista

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