Saudade da “Gilda”

"Gilda", com a Ponte JK ao fundo

As redes sociais estão virulentas contra o presidente Bolsonaro porque ele foi passear de jet-ski no Lago Paranoá justamente no sábado em que chegou a dez mil o número de mortos pelo coronavírus. Não lhes tiro a razão, porque a gente sabe que um chefe de Estado, na ausência de palavras, tem de se manifestar ao menos pela mímica, pelo mis-en-cène, enfim, pela teatralização de um sentimento.

E a imagem que o presidente projetou, montado no jet-ski, foi a de felicidade. Melhor teria feito se ficasse em casa, pois velório num belo lago azul só mereciam almirantes de longo curso. E acontecia só na Inglaterra e na Escandinávia de outrora.

Bolsonaro pilotando o jet-ski no Lago Paranoá

Seja como for, os presidentes da República têm o direito de flanar nos fins de semana em que não haja trabalho. Afinal, todos estamos no mesmo barco, seja sobre águas tranquilas ou tormentosas. Aqueles que nos governaram com a farda do Exército, a mesma que Bolsonaro um dia vestiu, também flanaram na Presidência, cada um a seu modo.

O marechal Castelo Branco, culto, gostava de ir para o Rio de Janeiro, a fim de aplaudir a peça teatral da hora. Dizem até que, desimpedido pela viuvez, nutria amor platônico pela Tônia Carreiro. Tinha bom gosto. Já o marechal Costa e Silva, com a sua reconhecida bonomia, preferia o joguinho de buraco en petite comitè, como escrevia o cronista da corte, Gilberto Amaral, ou o cineminha, como os favoritos se referiam com pedantismo à ótima sala de projeção do Alvorada.

A atriz Tônia Carrero – Foto Antônio Guerrero

O general Médici, que dizia não saber o que o delegado Fleury fazia nos porões, aproveitava os fins de semana para sentar-se diante da TV para ver os jogos do Grêmio e do Flamengo enquanto sorvia seus uisquinhos. Como quase todos nós da classe média o fazemos. Desabrido torcedor, Médici chegou mesmo a combinar com os dirigentes de ambos os clubes a não jogarem na mesma hora, para o deleite ser completo e prolongado. Eu também faria o mesmo com o meu Botafogo e o América Mineiro.

No domingo do Tri no México, a TV Globo teve de cortar várias cenas das filmagens da alegria no gramado do Alvorada porque o presidente parecia ter sorvido mais doses do que é recomendável a um governante, exceção honrosa para o grande Churchill que tinha o direito de fazê-lo pois enfrentava a pandemia nazista. Nada demais fez Médici, era o Tri, puxa vida!.

Já o sisudo general Geisel, que botou pra correr o delegado Fleury, apreciava o pôquer, mas um pôquer desanimador para os atletas do gênero, pois as fichas valiam apenas centavos. Luterano sincero, Geisel não permitia dissipações. Nenhum vencedor da noite saía do Alvorada com mais de dez cruzeiros no bolso e nenhum perdedor ficaria mais pobre de seus centavos abocanhados no pano verde.

Meu admirado general Figueiredo tinha antipatia ao Alvorada e residia na Granja do Torto. Enquanto a primeira dama jogava buraco com as amigas, ele assava churrasco na cavalariça da granja e praticava outras coisas que não interessam a ninguém. Nos últimos dois anos, doente da coluna, o general passava os fins de semana ou no Rio ou em São Paulo, sempre em consultas médicas, coitado, privado do seu churrasco e das outras coisas.

Os ex-presidentes Geisel e Figueiredo – Foto Orlando Brito

Eu tinha de acompanhá-lo por dever do ofício de repórter e apreciava demais essas viagens, pois papava as diárias da empresa para a qual trabalhava e curtia a praia de Ipanema enquanto Figueiredo se trancava no hotel Cesar Park; ou então eu ia comer do bom e do melhor no restaurante do Hotel Cadoro, enquanto o presidente penava as dores, dentro de uma suite do charmoso hotel da Rua Augusta. Numa manhã de sábado, semelhante àquele em que Bolsonaro andava de jet-ski, flagrei o general lendo uma biografia de Einstein, e ele disse que antes havia se distraído resolvendo equações de um antigo livro de matemática da Escola Militar do Realengo.

Francamente, o que mais me impressionou no fim de semana do capitão sucessor desses generais-presidentes,  não foi a alegria de Bolsonaro cavalgando o jet-ski e se enturmando com outros alegres navegantes lacustres que não dão bola para a quarentena e estão sujeitos a multas além do risco de contaminação.

O que me impressionou, na flanação de Bolsonaro, foi o fato de a Presidência da República possuir um jet-ski. A mim pareceu uma diminuição da grandeza presidencial. Como faço parte do grupo de risco, sou do tempo remoto em que o Palácio da Alvorada proporcionava aos seus ocupantes, para a legítima distração de um fim de semana, uma verdadeira maravilha da navegação, e não um pseudo-transporte aquático como um jet-ski. A Presidência, meus amigos, tinha a lancha Gilda! Foi construída no Arsenal de Marinha, no Rio, para o presidente Getúlio Vargas. Toda ela esculpida em madeira-de-lei. Projetada por um engenheiro-naval alemão. Podia receber até 25 passageiros nos seus 48 pés de comprimento.

O presidente Juscelino

O presidente Juscelino, romântico como era, quando a conheceu, apaixonou-se. O presidente bem-humorado disse ao ministro da Marinha que a Presidência da República ficaria com a lancha em troca do porta-aviões que mandou comprar na Inglaterra, o Minas Gerais. Mas a lancha não tinha nome, apenas um prefixo da Marinha de Guerra. Quanto desprezo por um bibelô! Mas era o rígido protocolo naval, que a referia como LTE-01, lancha de transporte especial. O mais amado dos nossos presidentes a batizou, dando-lhe o nome da personagem vivida pela atriz Rita Hayworth no célebre filme Gilda. “Nunca houve uma mulher como Gilda”, dizia a propaganda do filme. Pois nunca houve uma lancha tão bonita quanto a que Juscelino trouxe para Brasília. E nem lago a futura capital tinha, imaginem!

“Gilda”, após restauração – Foto Guilherme Mazui
Visitantes desembarcam de “Gilda”, no pier do Alvorada, para visita ao ex presidente JK

A vinda

de Gilda simbolizava assim a certeza de que haveria um lago e uma cidade, a despeito daqueles céticos que azucrinavam a vida do sonhador JK. Quando o lago encheu, Juscelino aproveitou. Recebeu a bordo lindas mulheres, como a deusa Jovenka,  esposa do marechal Tito, ditador da Iugoslávia. E muitas atrizes de Hollywood que nos visitavam. Noves fora as namoradas de ocasião. Isto sim, é um fim de semana completo para nenhum bobo alegre das redes sociais botar defeito.

Os dois presidentes civis que sucederam a JK, Jânio Quadros e João Goulart, desprezaram Gilda. Jânio preferia o cineminha com uísque no Alvorada e Jango churrasco com uísque no Torto. Dona Maria Teresa Goulart deu uma voltinha apenas. Aí vieram os militares. Castelo deu uma volta com os netos. Era homem de pés no chão, de terra firme, assim como Costa e Médici. A beleza de Gilda, esquecida no atracadouro do Alvorada, vinha esmaecendo. Médici a doou à Federação de Iatismo de Brasília, acreditando que fossem lhe dar melhor utilidade. O que não ocorreu. A lancha acabou sendo arrematada pelo empresário carioca Gerald Souza, que empenhou-se na ressurreição da beleza náutica. No ano passado, colocou-a à venda pela internet. Não sei mais o destino de Gilda.

“Gilda”, no estaleiro para recuperação

Entrementes, ainda no Governo Médici, a Presidência da República adquiriu outra lancha, moderna. Mas a finalidade dela não era mais a flanação presidencial, e sim de estratégia da segurança pessoal dos senhores presidentes. Em caso de rebelião civil ou militar em que houvesse cerco ao Alvorada, impossibilitando a saída do governante por terra ou pelo ar, a escapada se daria pelo Lago Paranoá. Por esse motivo foi construído um enorme pier na residência oficial do ministro da Marinha, na QL 12 do Lago Sul.

Era uma esplêndida construção de alvenaria concretada e com bonitos lampiões elétricos. Naquela gravíssima hipótese, era ali que o presidente desembarcaria são e salvo dos insurgentes. Foi o que me revelou em 1989 o então chefe da Casa Militar, general Bayma Dennys. Infelizmente, a Marinha abandonou completamente o zelo pelo belo pier, e hoje suas ruínas são usadas por pescadores e maconheiros.

Na atualidade, o protocolo de segurança para o caso de escape presidencial certamente é outro. Ignoro qual seja. Mas quê saudade da Gilda!

— Pedro Rogério é Jornalista

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