Queremos uma imprensa regulada?

O Brasil tem uma história de censura, de pressões contra a imprensa. A Constituição passou o rodo em alguns desses hábitos. De olho grande no dindim, os veículos de imprensa abrem a guarda para aceitar um registro, uma regulação, uma sujeição a alguma autoridade.

Regulação da mídia

Nos últimos dias, a possibilidade de votação de um marco legal da fake news abriu frentes de debate entre os interesses em jogo, em diversos temas. É que o texto distribuído pelo relator, deputado Orlando Silva, trata de uma variedade de assuntos. São mais de 60 artigos, densos, complexos, cheios de nuances.

Google

Um desses assuntos é a remuneração dos veículos de imprensa. O argumento para oferecer esse pagamento é simples. Hoje os buscadores, como o Google, indexam o conteúdo de jornais, revistas e programas de televisão, muitos destes com portais na internet, sem pagar nada a estes. Mas o buscador ganha um trocadinho a cada pesquisa dos internautas, nem que seja um banerzinho com uma propaganda, ou a visualização de um conteúdo patrocinado, ou só mesmo o prestígio do usuário ver a informação e pensar: “moço, esse buscador é muito fera, encontra tudo!”.

Nas redes sociais, a mesma situação. Milhares de produtores de conteúdo de pequena escala comentam, às vezes de modo sanguinário, as notícias apuradas pelos veículos de imprensa, colecionando seguidores. Ganham sua notoriedade e seu trocadinho sobre um banerzinho.

Capas de jornais – Foto Reprodução

E o veículo de imprensa, esse não ganha nada. Pelo contrário, perde, porque ninguém vai encher a casa de papel de jornal se pode ter a informação no computador ou no smartphone, limpa, cheirosa (ou deliciosamente envenenada) e de graça. A não ser que tenha cachorros e gatos e precise do jornal para… bem, vocês sabem do que estou falando.

O projeto de lei é claro. Em uma das versões que circulam por aí do substitutivo do relator (são várias), o artigo 32 determina que “os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores, produzidos em quaisquer formatos, que incluam texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas, na forma de regulamentação”.

Só se livra de pagar uma taxazinha, diz o texto, o usuário pessoal, quando oferece o endereço da notícia, para localização do material. Para ser remunerado, o órgão de imprensa tem que existir há pelo menos dois anos, operando de modo regular, organizado e profissional. E essa compensação pode ser pactuada entre um representante dos órgãos de imprensa e a plataforma de busca ou rede social. Bem ao estilo patronal dos bons tempos getulistas. Pronto, salvamos os jornais.

Parlamento da Austrália aprova lei que obriga ‘big techs’ a pagarem por notícias

Só que não. Esse dispositivo foi inspirado em uma lei da Austrália, a Lei nº 21, de 2021, chamada de “Código de Negociação entre Imprensa e Plataformas Digitais”. Essa lei determina que haja uma remuneração pela reprodução ou indicação de um conteúdo jornalístico. No caso de um impasse, será feita uma notificação de que um processo de negociação está sendo aberto. O governo irá mediar essa negociação. Quem desejar conferir de modo detalhado como isso funciona, pode ir diretamente à seção 52-ZE dessa lei e começar a ler a partir dali. Um representante da empresa jornalística se sentará à mesa com o detentor da plataforma digital e estes irão especificar os pontos de negociação. Se não houver acordo, a ACMA, autoridade australiana de comunicações e mídia, indicará um mediador.

Como? A imprensa na Austrália é regulada? Sim! Esse é o pulo do gato dessa lei. Como ninguém quer estar sujeito à arbitragem da agência, todas as negociações chegam a um acordo. Até hoje, apesar da lei, não houve necessidade de intermediar uma barganha dessas. Se não houvesse essa possibilidade, a lei seria um “tigre de papel”, nas palavras de um analista.

Constituição do Brasil, promulgada em 1988 e alterada 128 vezes – Arte: Lucas Lambertucci / Alep

Esse é o problema de se importar uma lei. Os textos legais funcionam no contexto de um marco constitucional específico. E a nossa Constituição de 1988 é clara: a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. Por similitude, a disposição de estende a portais noticiosos, agências de notícias, programas jornalísticos na tevê e por aí vai.

Graças a Deus. O Brasil tem uma história de censura, de pressões contra a imprensa, de proibições de publicar esta ou aquela notícia que pode prejudicar algum interesse ou uma reputação. A Constituição passou o rodo em alguns desses hábitos. Não sumiram, mas ficaram mais fraquinhos. E agora, de olho grande no dindim, os veículos de imprensa abrem a guarda para aceitar um registro, uma regulação, uma sujeição a alguma autoridade que diga que sim, essa empresa opera há dois anos, sim, tem uma operação regular, organizada e profissional, sim, merece seu trocadinho.

Imagino que as empresas esperem que esse registro seja privado e que alguma entidade patronal, como a ANJ, a ABERT, a ABTA ou uma outra dessas siglas nobres, de longa estirpe, seja apontada na regulação como uma representante qualificada. Muito arriscado. Por um lado, qualquer registro, mesmo privado, mesmo de uma terceira parte reconhecida por todos, é sempre uma camisa de força. Por outro lado, quem não quer ganhar o poder de controlar a imprensa, nem que seja um pouquinho?

– Bernardo Lins é doutor em economia e especialista em regulação. Foi consultor legislativo de 1994 a 2022. É membro da Academia Brasileira da Qualidade.

 

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