O regabofe

Jair Bolsonaro. Café-da-manhã no Palácio Planalto, em 30 de maio de 2019 - Foto Orlando Brito

A revelação dos gastos governamentais com alimentação provocou inevitáveis desgastes na imagem das Forças Armadas.

É interessante registrar que nem o regime militar, com todos os danos causados à imagem do Exército, Marinha, Aeronáutica, conseguiu romper os laços afetivos das Forças Armadas com a Nação.

O livro de Alfred Stepan Os militares na política dedica capítulo à estrutura do recrutamento militar. Citando antigo Ministro do Exército, procura mostrar o Exército como “uma parte do povo, talvez a mais representativa, porquanto dentro de suas fileiras se misturam as classes, se igualam os padrões sociais, se ignoram os credos e os partidos políticos, se esquecem as diferenças e as dessemelhanças entre os homens” (Ed. Artenova, 1975, pág. 15).

O cientista político Alfred Stepan

Ao longo da História o Exército não se quedou indiferente diante das dificuldades do País. Quartéis, veículos e armamentos são bem conservados e mantidos dentro dos limites operacionais. Não se toleram desperdícios. O gasto com um único projétil é contabilizado. Regimentos e batalhões distribuídos pelo território nacional observam estilo de vida espartano. Os recrutas se alimentam em casa, por escassez de dinheiro destinado à alimentação. Registra Alfred Stepan que a política de recrutamento local “parece residir no desejo de eliminar a despesa considerável com o transporte do recruta de sua casa para um quartel de uma área geográfica diferente” e que “muito frequentemente os recrutas tomam refeições e pernoitam em casa durante o serviço militar”.

Instituição histórica de grande valia é o Tiro de Guerra. São dezenas de unidades distribuídas por vários Estados, que permitem ao jovem prestar o serviço militar obrigatório sem deixar o trabalho e os estudos, para continuar com a família. Fiz o Tiro de Guerra em Capivari em 1954 e me beneficiei do contato com os princípios de hierarquia e disciplina, sob o comando de rigoroso sargento.

Bolsonaro fala na churrascaria sobre as latas de leite condensado

A notícia pública dos gastos com alimentação não deixa de ser surpreendente. É incondizente com a história das Forças Armadas, educadas no regime de solidariedade com o povo, frugalidade alimentar e simplicidade de costumes. A farda verde oliva não combina com desperdício e ostentação.

As explicações divulgadas pelo Centro de Comunicação Social da Defesa (CCOMSOD) não me parecem satisfatórias. O militar aquartelado toma as refeições no quartel, pois não há outra maneira de fazê-lo. Tal seria se, durante o expediente, interrompesse o trabalho no meio do dia, anotasse o cartão ponto e fosse almoçar no restaurante próximo. É equivocado dizer que civis recebam auxílio-alimentação. O benefício é concedido a determinadas categorias de servidores públicos. Assalariados de baixa renda podem ser beneficiados pelo Programa de Alimentação do Trabalho (PAT) instituído pela Lei nº 6.231/1976, sancionada pelo presidente Ernesto Geisel. Grandes empresas mantem refeitórios onde oferecem alimentos de excelente qualidade a todos os empregados, sem onerar o erário público.

É inquestionável que militares de todas as patentes têm direito a se alimentar com iogurte natural, leite condensado, leite em pó, geleia, frutas e legumes. Não, porém, neste momento de profunda crise. As justificações para compra de leite condensado e goma de mascar chegam a ser risíveis. O protesto generalizado é fruto do sacrifício que o País atravessa, sob o olhar indiferente do chefe do governo. Milhões de desempregados, subempregados e desalentados.

Os hospitais e unidades de terapia intensiva com capacidade esgotada. Pessoas morrendo por falta de UTI ou de oxigênio. Servidores públicos e privados, da área da saúde, se sacrificam, expostos à contaminação pelo covid-19. As esperanças repousam nas vacinas, cuja eficácia o presidente Jair Bolsonaro insiste em ignorar. Mais de 225 mil mortos e de 9 milhões de infectados derrubam qualquer argumento em defesa de privilégios. Há pessoas pedindo ajuda nas esquinas. Crianças passando sede e fome. Seres humanos vivendo nas ruas à procura de abrigos que não existem.

O Exército de Caxias, Osório, Rondon, Mascarenhas de Moraes, Castelo Branco, Leônidas Pires Gonçalves, merece o apreço da Nação. Não se permita que seja desacreditado por medidas incompatíveis com o dramático momento que atravessamos, cuja amplitude e duração não conseguimos prever.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

 

 

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