O dia em que o sol de primavera me fez chorar

Os rios voadores que inundavam as terras sudestes, a fertilizá-las, hoje foram substituídos pela fuligem que vem do Pantanal em chamas. Desesperançada com o hodierno presidente, a cronista lamenta o Brasil que vê pelas lentes dos cinegrafistas

Brigada de combate ao fogo em fazenda do Mato Grosso do Sul - Foto: Saul Schram

Todo ano, desde 1979, durante a ditadura militar, a perspectiva da chegada da primavera era comemorada com uma linda música composta por Beto Guedes e Ronaldo Bastos: “Sol de Primavera”.

Já havíamos chorado muito – dizia a canção. Que “muitos se perderam no caminho”, sabíamos todos os que lutavam por liberdade e justiça social. Mas “Sol de Primavera” era alento. Saudar novos tempos, cantando-a, era estímulo para continuar a caminhar, “crescer nossa voz, no que falta sonhar”.

Beto Guedes e Ronaldo Bastos, 35 anos da música Lumiar – Praça do Coreto em Lumiar (RJ) – 16/07/11 – Foto: Lívia Bastos

Hoje, o sol de primavera me fez chorar. Eu o vi, pela lente de um repórter cinegrafista sobre uma São Paulo tomada pela fuligem que viajou milhares de quilômetros, tangida pelos ventos, ventos que, em outras temporadas, nos traziam os “rios voadores” que se formavam na Amazônia e que desabavam sobre o Sudeste como uma “chuva boa, prazenteira, criadeira” que – nas belas palavras do maestro soberano – “molha a terra, que enche o rio, que lava o céu, que traz o azul!”.

Já o astro soberano, na chegada da primavera, como me mostrou o cinegrafista, este estava avermelhado sobre um país em chamas. Estivesse eu em Sampa, talvez pudesse vê-lo a olho nu. Não sei se poderia admirá-lo. Estava esmaecido, muito antes da hora de se pôr. E era como estivesse a nos dizer que não era responsável por aquele circo de horrores no Pantanal: jacarés calcinados, onças pintadas em fuga, araras azuis sem ter para aonde ir, tamanduás com patas dilaceradas. Era como se também ele chorasse por ver o rio Paraguai com uma lâmina d’água de apenas cinquenta e seis centímetros, na altura de Corumbá.

Frei Leonardo Boff – Foto: Orlando Brito

Essa mesma fuligem quase impediu que o presidente da República pudesse aterrissar no Mato Grosso para, ali, anunciar que devemos tratar de dar início ao novo plantio de soja, depois de ter dito que o Brasil cuida como ninguém do meio ambiente. A plateia de acólitos mal podia respirar. E não era porque se tratasse de alguma epifania messiânica. Havia algo de sinistro, algo de cabuloso naquela cerimônia. Parecia não haver uma “boa nova [a] andar nos campos”. Nessa fase de “necroceno” pela qual a Mãe Terra passa, no adequado neologismo cunhado por Leonardo Boff, os homens de agrobusiness não cogitavam de querer “ver brotar o perdão onde a gente plantou”. Talvez não tivessem lido, ainda, as últimas notícias vindas da Europa. O evento, de toda maneira, era sombrio, e não apenas porque o sol também se apresentava enfraquecido, tanto quanto as pessoas que ficam em casa, durante a pandemia, como fez questão de ditar o presidente da República.

Desta vez, o sol de primavera fez crescer em mim a sensação de distopia. Sempre acreditei nas palavras de Eduardo Galeano, segundo as quais a percepção de a utopia estar sempre a se afastar de nós, por mais que caminhemos, tem o preciso sentido de nos estimular a seguir caminhando.

Pode ser. Revejo a imagem do sol entristecido sobre São Paulo. Ainda faltam poucos dias para a chegada da primavera. Ele parece querer me dizer que devo me atentar para os últimos versos da canção: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”.

Deixe seu comentário