O Brasil no pesadelo de Alice

Troca de bandeiras do Brasil - Foto de Fábio Pozzebom, ABr
Desenho original da edição a cores. “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”. 1865

Com o título original “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, a instigante obra publicada em 1865 por Lewis Carroll – pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson – alcançou um merecido reconhecimento mundial. A leitura proporciona múltiplas interpretações e analogias infindáveis. Os diálogos são intrigantes e as reflexões complexas. A singularidade da obra – pretensamente infantil – resistiu à ação corrosiva do tempo e ainda hoje ganha adaptações, reedições e leitores de todas as idades. Na essência o livro aborda a naturalização do absurdo, as crises de identidade, a tirania monárquica, os desvarios dos personagens, as falsidades, a desordem, as armadilhas ensejadas pelo desejo irrefletido do novo, o valor do tempo e, principalmente, as consequências de julgamentos injustos. No estranho mundo onírico de Alice, animalizado por sapos, porcos e ratos falantes, estão todos os componentes da literatura disruptiva brasileira atual: bizarrices, autoritarismo, crises de identidade, caos, diversionismos, mentiras, irracionalidade, a loucura, a estupidez, o terror, a insegurança e manipulações judiciais.

O enredo surreal banalizando a lógica do absurdo é inaugurado quando Alice, atraída – ou traída – por uma imprudência irrefletida, fruto da curiosidade infantil, mergulha em uma toca perseguindo o coelho branco do relógio sem pesar as consequências ou se será possível reverter o caminho escolhido. O sonho que se transformou em pesadelo. A invocada racionalidade de Alice se torna presa fácil para o apelo do novo e do desconhecido. O insólito coelho, reluzindo a falsa novidade, é a alegoria da passagem inevitável do tempo, de seu caráter fluído, inapreensível e não reembolsável. Ao entrar na toca, Alice cai em um buraco escuro e sofre uma queda prolongada até atingir as profundezas de um mundo bizarro que a desconecta da realidade.

Nesse fosso caótico, Alice flutua em dois mundos antagônicos e se bate em dicotomias: a mentira, a verdade, a transgressão e as normas, o absurdo e a racionalidade, a loucura e a sanidade, a morte e a vida, a insegurança e a previsibilidade, o caos e a ordem, os surtos e o equilíbrio, as bizarrices e a normalidade, a anarquia e a lógica, o terror e a estabilidade, o grotesco e a padronização, o ódio e a tolerância, a negação e a realidade e a tirania e a democracia.

Bolsonaro – Foto Orlando Brito

O distorcido universo do subterrâneo de Alice foi o caminho escolhido por perto de 39% dos brasileiros, contaminados por uma síndrome de Alice inconsequente. Eles nos mergulharam em uma toca sombria em 2018 e condenaram o Brasil a um vertiginoso retrocesso à idade média. O tempo desperdiçado na aventura inconsequente não será reposto jamais. A novidade Jair Bolsonaro traiu seus seguidores, suas Alices choram, mas as vidas que perdemos, a economia que implodiu, os empregos fechados, o tempo desperdiçado são irrecuperáveis. O apelo simplista da mudança, a sedução pelo novo, a ilusória esperança no desconhecido, de mudar por mudar ou por inquietação, conduzidas pelo terror da desorientação sempre nos legarão desassossegos, ameaças graves e desintegrações profundas.

Agora estamos muito mais “atrasados”, como repete o roedor branco, objeto da curiosidade de Alice. Da cartola bolorenta do chapeleiro maluco Jair Bolsonaro saíram as mortes, o mal, a miséria, as milícias, os maus militares, as malversações, o medo e as mamatas. São 3 anos asfixiando em um buraco sombrio, distorcido, destrutivo, absurdo e animalizado pelos cavernícolas que povoam o bolsonarismo. Nesse mundo disparatado, o “país das maravilhas” deve ser visto como o gênero do esdrúxulo, assombroso, jamais na acepção de admirável.

Empregada Mary Ann

Para se adaptar ao ambiente inóspito e esquisito, Alice ingere um líquido para diminuir de tamanho, mesmo processo de encolhimento generalizado do Brasil após escolher se atirar na toca fascista de Bolsonaro. Em suas vertigens, Alice desanda a falar coisas desconexas e, temendo estar perdendo a sanidade, chora copiosamente e quase se afoga nas próprias lágrimas geradas por uma escolha errada, uma aventura impensada. Sufocada pela estranheza incômoda da nova atmosfera, o desconforto com personagens destrambelhados e caóticos, Alice mergulha em outra toca, a da confusão mental, e se põe a questionar a própria identidade e já quase não se reconhece. É confundida pelos personagens do livro com a empregada Mary Ann e até com uma serpente. “Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-se a Alice com voz lânguida e sonolenta: “Quem é você?” Alice respondeu muito tímida: “Eu… já nem sei, minha senhora, nesse momento… Bem, eu sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que mudei tantas vezes desde então…” A lagarta, cuja essência é a metamorfose, arrisca que ela acabará se acostumando. Na ficção de Caroll, uma das leituras deste episódio é a transição de Alice da fase infantil para puberdade. Na tormenta brasileira, o buraco fascista e a ignorância oficial representaram a involução, a diminuição da estatura brasileira na geopolítica mundial, a desconexão da realidade e o embaçamento da identidade nacional.

A reflexão de Alice reproduz a crise de identidade que fustiga o Brasil após o “chá de loucos”, realizado diariamente na farra despudorada da estupidez no centro do poder. São cada vez mais assíduos e procedentes os questionamentos sobre a fragmentação da identidade brasileira e o esfarelamento antropológico. A partir de uma literatura da intolerância, do ódio, da má-fé, de realidades paralelas, da tirania e das mentiras – replicadas pela maior caixa de ressonância dos sistemas presidencialistas – foram sendo pulverizados os atributos positivos dos brasileiros reconhecidos mundialmente: a boa índole, a harmonia, a mistura humanizada, a identidade social miscigenada, a interação generosa, a diversidade acolhedora e amistosa, a graça, a capacidade criativa e a cordialidade. O buraco pantanoso do bolsonarismo se incumbe de enterrar essas virtudes diariamente para substituí-las por um país habitado por criaturas rústicas e bestializadas que, literalmente, colocaram Brasil de “cabeça para baixo”, como no mundo incompreensível e caótico de Alice.

Nossos “desaniversários” são melancólicos, com as janelas fechadas para o mundo, atolados na ignorância, no desprezo, no isolamento subterrâneo e no sadismo. O absurdo, rotineiro e desproporcional, não choca mais de tanto ser reiterado. Todos vão dessensibilizando, se habituando à normalização da esquizofrenia, da insanidade e da homogeneização do mal. O desvario virou um comando único, rotineiro, inercial, de quem pretende nos condenar à morte e deseja que ela seja silenciosa e consentida. Tornar-se medíocre passou a ser moralmente tolerável e a convivência com a estupidez, obrigatória. Houve um rebaixamento generalizado de expectativas e exaltação da desesperança através de maniqueísmos redutores. Nesse buraco humanitário os obscurantistas se sentem em casa, intimamente confortáveis em suas tocas escuras ecoando suas demências. O país se tornou estranho, sombrio, imoral, fantasmagórico, colérico, surreal, crepuscular e hostil. Somos uma Nação-buraco soterrada por ruínas civilizatórias, subterrâneos socioeconômicos e escombros da loucura. “Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, observou Alice. “Oh, não se pode evitar”, disse o Gato, “todos são loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.” “Como sabe que eu sou louca?” indagou Alice. “Você deve ser”, respondeu o Gato, “ou então não teria vindo aqui.”

Alegoria máxima da insanidade e do absurdo encontra-se no julgamento do Valete de Copas e no mandamento despótico da Rainha de Copas na perseguição habitual e única aos adversários que ousam enfrentá-la: “Cortem-lhe a cabeça”, uma metáfora da eliminação autoritária das ideais e ideologias divergentes. Equivale a “minha especialidade é matar” de Bolsonaro. A trama e os personagens guardam uma desconfortante similitude com o pesadelo brasileiro. O julgamento do Valete de Copas é precedido por uma estridência de elevados decibéis, correrias, exatamente como na publicidade opressiva, nos vazamentos seletivos e conduções coercitivas abusivas patrocinadas pela 13 Vara de Curitiba. O ex-juiz Sérgio Moro é o espelho arquetípico do Rei de Copas que, mesmo envergando a peruca branca dos juízes, responsável pela observância dos preceitos legais, é o símbolo da tibieza, da manipulação, da subserviência, da transgressão e da mediocridade. O método, tanto no País das Maravilhas quanto na nossa barbárie, é a fixação antecipada da sentença e a condenação, mesmo sem provas. Nas masmorras da esdrúxula torre de Curitiba os capítulos das decapitações ilegais foram escritos a muitas mãos. Várias cabeças de inocentes rolaram em nome de uma fábula política estapafúrdia, rabiscada pelo Rei de Copas e alguns valetes de naipes fascistas do Ministério Público.

Lula depõe perante o juiz Moro

O Coelho Branco, condutor fantástico que transita temeroso entre os dois mundos, lê a acusação. O Valete de Copas era, fraudulentamente, acusado de roubar as tortas da Rainha colérica. As testemunhas convocadas parecem escolhidas fortuitamente para condenar, já que não sabem nada sobre a situação. Alice, que no começo mostrava-se animada para assistir a um julgamento, fica cada vez mais irritada com todos os absurdos que presencia. Fica ainda mais revoltada quando descobre que a falsa prova que existe contra o Valete é um bilhete sem a sua caligrafia nem assinatura. Durante todo o julgamento, Alice não se intimida com a histeria autoritária da Rainha e passa a defender o Valete de Copas contra as falsas imputações. Estimulados pela atitude de Alice as cartas se rebelam e inicia-se a batalha das cartas. O episódio é uma sátira ao sistema judicial, revelando a injustiça, a miséria e o absurdo dos processos judiciais. No pesadelo brasileiro, o Rei de Copas – Sérgio Moro – já foi declarado incompetente e parcial pelo STF. Ele rasteja em popularidade, que supunha ser superior à da Rainha. A tocaia jurídica contra o ex-presidente Lula expôs uma caudalosidade de absurdos, mostrando tratar-se de um jogo de cartas marcadas, com propósitos políticos para decapitar o favorito das eleições e passar o cetro e o trono para Rainha de Copas do fascismo.

Rainha de Copas

A Rainha de Copas é a autoridade máxima daquele território assombroso, aterrorizando todos os personagens e forçando-os a obedecer a suas ordens desarrazoadas e satisfazer os seus caprichos autocráticos. Além de encarnar a iniquidade de um sistema com pendores monárquicos, ilustra o autoritarismo e o abuso de poder dos tiranetes. Chamada de “velha tirana” por Alice, a Rainha é a caricatura do terror imperial, caprichosa, egocêntrica, absolutista, eruptiva, impulsiva e aterrorizante. De pavio curto e deformada, governava através do medo, guiada por uma fúria cega, por gritos, ameaças e sempre bajulada por súditos acríticos. Suas sentenças monotemáticas de degola eram genéricas e arbitrárias. Todos os atributos de Jair Bolsonaro: autoritário, colérico, belicoso, genocida, despreparado e bravateiro que comanda um universo grotesco de súditos bestializados, assassinos, corruptos e milicianos que só atormentam o país.

Na bizarrice monárquica, assim que é ordenada a decretação da sentença do Valete de Copas antes mesmo do veredito dos jurados, Alice desafia a Rainha, mostrando que perdera o medo. Vai além, expondo o absurdo e a loucura de toda a situação: “Vocês não passam de um maço de cartas!”. Quando finalmente assume a coragem de confrontar aqueles que a atacavam, afirmando a sua força e determinação, Alice acorda e percebe que tudo foi um sonho, uma agonia aterrorizante. No pesadelo brasileiro as cartas da estranheza já estão com data de validade vencida, marcadas e amarfanhadas. Se prestaram a todo tipo de truques, ilusionismo, malversações, mortes, mentiras e surrupios. No apagar das luzes desse buraco civilizatório, muito nos foi subtraído, sobretudo vidas, esperanças e dias perdidos. Os mágicos desse pesadelo transformaram a diversão em trapaça, a magia em fraude e o entretenimento em tormenta golpista.

Uma das passagens mais emblemáticas no suplício de Alice, que nos é assustadoramente íntimo, é retratada no diálogo com gato risonho, símbolo de independência e da mudança. “Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?” “Depende muito de onde você quer chegar”, disse o Gato. “Não me importa muito onde…” foi dizendo Alice. “Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá”, disse o Gato. “…Desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, explicando. “Oh, esteja certa de que isso ocorrerá…Alice não disse nada: sentou-se com a cabeça entre as mãos, indagando a si mesma se alguma vez as coisas voltariam a ser como antes”. Em outubro os brasileiros irão embaralhar e distribuir as cartas para decidir se permanecem nesse buraco fantasmagórico e asfixiante ou despertam do pesadelo através do voto consciente, realista e democrático para tudo voltar a ser como antes.

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