O Brasil conturbado apresentado pela TV

Nesse período de fome e sofrimento para milhões, as maiores emissoras de TV do Brasil começaram a apresentar programas sobre... comida. Supostamente refinada. Com grande audiência. Mas não pelo produto em si. É que assim a pessoa , mesmo sem poder comer, pelo menos vê as comidas

Manifestação contra o custo de vida no governo Bolsonaro - Foto Orlando Brito

Um dos grandes intelectuais e filósofos brasileiros, Sérgio Porto, conhecido também pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, costumava chamar a televisão de ”máquina de fazer doido”. Houve alguma evolução. Hoje não é bem assim, mas a TV continua como um aparelho indutor de debiloides.

A realidade brasileira está cada vez mais difícil. A começar pelo presidente da República, mero xingador escorraçado do Exército e apaixonado por Hitler. Mas está chegando ao final. Falta comida para boa parte dos brasileiros, não há moradias, escolas, transporte público, saúde, comida, saneamento. Para os pobres apenas uma mesadinha inventada por Lula há anos.

O que não existe para nossa gente sofrida é futuro. Essa realidade, com enfoques diversos, é transmitida aos brasileiros pela televisão, cuja programação mistura desastres e criminalidade com ilusões e bobagens para iludir o público. A missão mais importante da TV tornou-se a informação, através do jornalismo, com níveis ampliados de realismo. Cada canal com sua criatividade, ou falta de. É só narrar os fatos.

E o Brasil de verdade vai assustando pelas telas. Sem dinheiro para o gás, no Rio, segundo a TV, a população pobre junta gravetos e pedaços de pau para improvisar fogões e assim cozinhar o que tiver para alimentar os filhos. As mães e avós explicam aos repórteres e suas câmeras como cozinhar com nada. E lá estão os exemplos vivos apresentados pela TV. Que os ricos assistem tomando uísque com queijos e camarão cozido.

Milhões estão assistindo tais realidades. Reportagem recente mostrou escolas do interior do Nordeste para onde as crianças vão a pé, depois de mal dormir em catres imundos. Para sentar, caixotes. Pelas janelas destruídas ao menos passa ventilação. Na Cidade ainda assim  Maravilhosa,  homens e mulheres famintos recolhem restos de carne e ossos despejados por caminhões e recolhidos de mercados. Para comer no barraco com os filhos. Está lá, deu na TV.

O Brasil desbrasilado. Mulheres agredidas por maridos ou namorados. Garota passeando de bicicleta atacada por canalha que passa de carro e a derruba com as mãos.  Devia ser levado para a cadeia para ficar passando a mão nos presos e esperar as reações. Passou na TV também, um realista veículo informativo.  Tanta coisa ruim e revoltante acontecendo para milhões de nossos irmãos (ãs)  mas as emissoras pouco investem em alguma forma que possa ajudá-los.

Há um programa que transformou a doce Ivete em apresentadora. Ela parou de cantar. Muitos baianos tiveram pré-enfarte por isso. A missão da suave Ivete no programa é comandar personagens com roupas horríveis cantando para o público adivinhar de quem se trata. Um baiano revoltado acertou rapidamente. À pergunta quem é esse personagem acertou em cheio: “É um babaca fantasiado de qualquer coisa”. O prêmio foi um ano de fornecimento gratuito de acarajé.

Curioso é que enquanto milhõõõões de brasileiros passam fome, mesmo a classe dita remediada está sofrendo. Nas entrevistas aos repórteres dizem que agora só podem comer frango. Carne, filet mignon só nas Bodas de Ouro. Uma senhora foi mais explícita com o repórter da TV. Indagada se ainda podia comer carne, frango, peixe ou siri, foi explícita:

– Meu filho, na situação em que me encontro, só estou comendo ovos. Mas se continuar assim breve só poderei comer ovo de codorna.

Nesse período de fome e sofrimento para milhões, as maiores emissoras de TV do Brasil começaram a apresentar programas sobre… comida. Supostamente refinada. Com grande audiência. Mas não pelo produto em si. É que assim a pessoa pode não comer, mas pelo menos vê as comidas. Se consideram gênios os chefs, chefs de cuisine, chefs du vin e por aí vai. O bom de garfo tem que ser de preferência francês. Pelo menos para ser chamado de chef. O resto é churrasqueiro, cozinheiro.

Tem até concurso de comida nos programas, com equipamentos moderníssimos, e cada qual faz lá sua gororoba.  Depois todos metem o dedo no prato para provar.  O prêmio aos vencedores é um livro raríssimo, de 2 mil páginas de texto explicativo e mais 500  de receitas exclusivas. O título é encantador: “La Viande du Mamute aux Temps Modernes: Les Burguers”.

Tem chefs grosseiros que dão uma lambida na prova e diz que o conjunto está ruim. Tem que concordar, senão o aspirante a chef será punido e condenado a fazer apenas torradas. E as emissoras de televisão se enchendo de dinheiro da propaganda dos produtos exibidos. Até guardanapos de papel e palitos pagam para aparecer no  programa.

O mais famoso programa de receitas da TV é o que mais se choca com a realidade de dificuldades no setor de alimentação e falta de comida para milhões de vítimas da pobreza total. Porque no programa tem comida demais, e  a apresentadora Ana Maria Braga é simpática e colorida. Cada dia seus cabelos tem cores diferentes, mas sempre lindos, assim como suas unhas.

A fartura em todos os aspectos, visual e de comidas, disseminou em regiões do país a praga de que todos podem comer bem e  barato. O “brequifeste” da Ana Maria, numa mesa de 8 metros quadrados inclui 8 tipos de pães, sendo a metade integral; 6 variedades de bolos; yougurtes de todas as frutas; sucos de laranja, morango e jaca; ovos de galinha, de pato e de jacaré; café e chocolate. Além de um refresco de sonrisal para aquietar o estomago.

Conta-se que em determinada favela um pai desesperado quebrou a televisão porque achava que no meio da vidraça poderia encontrar um pão inteiro. Seu filho, algo precoce e no quebrado computador do vizinho, mandou mensagem para Ana Maria Praga perguntando se poderia haver em outro lugar uma mesa tão farta quanta a do seu programa. E completou:

– Nossa mesa também é farta. Farta tudo.

— José Fonseca Filho é jornalista

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