Memórias de um capitão da milícia

Jair Bolsonaro, sem máscara, mas com a caixa de Cloroquina de cabeça para baixo, na cerimônia de posse do general Pazuello, no Ministério da Saúde - Foto Orlando Brito

Março de 2022 assinalou os dois anos do início das políticas restritivas quanto a circulação de pessoas, funcionamento do comércio, clubes, escolas, parques, estádios e bares no Brasil. Um cenário trágico que enlutou o mundo, escureceu a humanidade, espalhou dores sem fim e cicatrizes incuráveis. Em março o decreto que estabeleceu o primeiro “lockdown” do DF, um dos pioneiros, completou dois anos. O Brasil registrava 529 infectados e 4 mortos.

Os especialistas, ainda tateando diante da devastação iminente da pandemia, recomendavam o isolamento para minimizar o contágio, evitar o colapso do sistema de saúde e atenuar os óbitos. Correndo contra o tempo, a ciência pedia tempo até se preparar para o embate com o vírus letal. Um tempo para pesquisar e desenvolver imunizantes ou remédios para enfrentar e dominar esse inimigo, tornando-o menos fatal. Dois anos depois, com o avanço da vacinação, algumas medidas já começam a ser flexibilizadas.

Nesse espaço de tempo, o Brasil apresentou um dos piores resultados no enfrentamento à pandemia graças ao comando obscurantista de um capitão, cujo tenebroso legado será a mentira, a miséria, a milícia e a morte de mais de 660 mil brasileiros. Em vez de se portar como presidente, Bolsonaro montou um bunker paraestatal para formular e divulgar políticas públicas equivocadas como a imunidade de rebanho e a prescrição de medicamentos ineficazes contra a Covid-19.

Esse negacionista atuou contra a vida convocando e participando de aglomerações, desdenhando de máscaras, conspirando contra os isolamentos, prescrevendo a cloroquina. Aparelhou o Estado para garimpar o remédio no mundo e o recomendava oficialmente pelo aplicativo lançado pelo general da morte, Eduardo Pazuello, o TRATECOV. A tragédia de Manaus, onde brasileiros inocentes morreram asfixiados em um experimento macabro, é a mais estarrecedora de toda pandemia. Rivaliza com os protocolos aterradores da Prevent Senior, estimulados pela família Bolsonaro, sempre ela, feia, suja e macabra.

Todos as vacinas são eficazes e seguras contra a Covid – Foto Redes Sociais, Reprodução

Fez tudo errado. O capítulo mais mortífero foi a sabotagem às vacinas. Ofícios e depoimentos revelados pela CPI do Senado mostraram a oferta de vacinas da Pfizer e do Instituto Butantan no final de 2020. Houve um deliberado atraso na aquisição dos imunizantes. No caso da Pfizer foram consumidos meses com desprezo às ofertas, indiferença a pedidos de audiência e até desculpas esfarrapadas (‘vírus em computador’) para justificar o injustificável.

As doses da Pfizer só chegaram aos braços dos brasileiros depois de mais de 80 expedientes ignorados e passados 330 dias da primeira oferta. A mesma sabotagem aconteceu com o Instituto Butantan e a Coronav, objeto da ignorância e xenofobia. Além da cobrança de propinas de US$ 1 na AstraZeneca, a prioridade era o contrato de R$ 1,6 bi para comprar 20 milhões do imunizante Covaxin, ainda em testes e o mais caro de todos. Francisco Maximiano, o intermediário escolhido para ficar rico, é um parceiro de Ricardo Barros, líder do governo.

Quando o deputado Barros mandava no Ministério da Saúde, Max conseguiu a façanha de vender ao governo remédios que não representava e ainda obteve o pagamento antecipado de perto de R$ 20 milhões. Nunca entregou uma cibalena e, por isso, responde por improbidade ao lado do amigo Barros.

Durante a pandemia foram centenas de frases e ações de Bolsonaro minimizando a doença, escarnecendo das mortes, tripudiando sobre a dor, estimulando experimentos em cobaias humanas, regendo, enfim, um genocídio doloso. O trote do descaso é longo e criminoso. Foram mais de meio milhão de sonhos abortados, de vidas ceifadas precocemente, de planos interrompidos, de futuros abreviados e milhões de famílias destroçadas eternamente. A obtusidade bolsonarista mergulhou o Brasil em um abismo sepulcral, usando e abusando de expedientes ilegais na tentativa de falsear ou desconectar a sociedade da verdade: gastos maciços em propaganda enganosa, redes orgânicas de disseminação de fake news, a reiteração da mentira como método para gerar entropias e a fabulação de mundos inexistentes com o propósito de maquinar um universo invisível e intangível.

Live de Bolsonaro: fé na eficácia da cloroquina

O messianismo, recorrente entre os populistas autoritários, se apossou de uma mente obscurantista, retrógrada e de baixíssima capacidade cognitiva. Entre pulverizar sua rudimentar formação militar e tentar compreender a complexidade do mundo, a gravidade de uma pandemia e a governança do Estado, sempre optou pelas escolhas simplistas, que não lhe exigissem esforços mentais e, ao final, se mostraram danosas ao país. Sempre preferiu ser o estadista do cercadinho, seja na economia, na política externa e interna, no meio ambiente, mas o fez principalmente na pandemia. Foram mais de 300 falas do capitão sabotando a ciência. Uma enciclopédia das trevas: contra vacinas, governadores, STF, OMS, imprensa, ex-ministros, a favor de medicamentos inúteis, tratamentos inexistentes e até mesmo a defesa de invasão de hospitais. A síntese é a famosa “e daí?”, pronunciada em 28 de abril de 2020, quando o Brasil superou o número de óbitos da China, com 5.083 mortes. As mais estarrecedoras:

“Estamos preocupados, obviamente, mas não é uma situação alarmante”- 26 de janeiro de 2020. Primeira fala pública sobre a pandemia;

“Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus” – 9 de março de 2020. (sem mortes e 25 casos);

“Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, (quem) está com problema, (quem tem) alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até que a China já praticamente está acabando” – 16 de março de 2020 (234 casos);

 “Já tivemos problemas mais graves no passado que não teve essa comoção toda, ou repercussão toda, por parte da mídia brasileira. O momento agora é de união de todos, é de reflexão e buscar soluções. A verdade está aí. É uma questão grave, mas não podemos entrar no campo da histeria” – 19 de março de 2020 (7 mortos e 647 infectados);

Rio de Janeiro – Aeroporto Santos Dumont – Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

“Estão tomando medidas, no meu entender, exageradas”… “Fecharam o aeroporto do Rio de Janeiro. Não compete a ele, meu Deus do céu! A Anac está à disposição, é uma agência autônoma que está aberta para todo mundo, para conversas. Eu vi ontem um decreto do governador do Rio que, confesso, fiquei preocupado. Parece que o Rio de Janeiro é um outro país. Não é outro país. Você tem uma federação” – 20 de março de 2020 (com 970 casos o contágio explode e 11 mortos);

“Agora há pouco, os profissionais do hospital Alberto Einstein (sic) me informaram que iniciaram protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com Covid-19. (…) Tenhamos fé que em breve ficaremos livres desse vírus” – 21 de março de 2020 (1.178 casos e 18 mortos);

“A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos (796) no tocante ao coronavírus” – 22 de março de 2020 (1.604 casos com 25 óbitos comparando ao H1N1);

“Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia na questão do coronavírus” – 23 de março de 2020 (1.924 casos e 34 mortes);

“Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”24 de março de 2020 em pronunciamento de rede obrigatória de televisão (47 mortos e 2.271 casos);

“Ele (o brasileiro) não pega nada. Você vê o cara pulando esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele – 26 de março de 2020 (2.988 infecções e 77 óbitos);

“Aplica logo (a hidroxicloroquina), pô. Sabe quando esse remédio começou a ser produzido no Brasil? Ele começou a ser usado no Brasil quando eu nasci, em 1955. Medicado corretamente, não tem efeito colateral” – 26 de março de 2020 (2.988 casos e 77 óbitos);

“Se o vírus pegar em mim, não vou sentir quase nada. Fui atleta e levei facada” – 30 de março de 2020 (4.661 casos e 165 mortes);

“Pedir um dia de jejum ao povo brasileiro em nome de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido possível” – 2 de abril de 2020;

Hospital 28 de Agosto lotado, em Manaus. — Foto Reprodução Tevê Globo

“Eu desconheço qualquer hospital que esteja lotado. Não é isso tudo que estão pintando” – 2 de abril de 2020;

“Duvido que um cara desses, um governador desses vá falar com o povo. Tá com medinho de pegar vírus, é? Ah, tá de brincadeira” – 2 de abril de 2020 (8.066 casos com 327 mortes);        

”Não sou coveiro” – frase síntese do pensamento obscurantista em 20 de abril de 2020, quando perguntado sobre o crescimento no número de mortos (40.814 infectados e 2.588 óbitos);

O Supremo decidiu que quem decide essas questões são governadores e prefeitos. Então, cobrem deles. A minha opinião não vale. O que vale são os decretos dos governadores e prefeitos” – 29 de abril de 2020 distorcendo a decisão do STF (78.162 casos e 5.466 mortes);

“Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma ‘peladinha’, alguns ministros, alguns servidores mais humildes que estão do meu lado” – 7 de maio de 2020 (135.106 mil casos e 9.146 mortes);

“Tá todo mundo convidado aqui. 800 pessoas no churrasco. Tem mais um pessoal de Águas Lindas, serão 900 pessoas confirmadas. Tem mais um pessoal de Taguatinga. 1100. Vai estar todo mundo aqui amanhã? 1300 pessoas no churrasco” – 8 de maio de 2020 (145.328 mil casos e 9.897 mortes);

Lockdown em Brasília – Foto Orlando Brito

“Não precisa dessa gana toda para conter a expansão. Conter por um tempo, porque o vírus vai atingir pelo menos 70% da população. Essa maneira radical de proporcionar lockdown… Eu não falo inglês, como é? Lockdown. Não dá certo, e não deu certo em lugar algum do mundo. A Suécia está bem com sua economia. Se morrem cem pessoas aqui e cem no Uruguai, há uma diferença enorme. Lá a população é 30 ou 40 vezes menor do que a nossa” – 16 de maio de 2020 (233.142 mil casos e 15.633 mortes);

“Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína” – 19 de maio de 2020 (271.628 mil casos e 17.971 mortes);

“O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta” – 22 de maio de 2020 (330.890 mil casos e 21.048 mortes);

“Seria bom você fazer isso na ponta da linha. Tem hospital de campanha, hospital público, perto de você, arranja uma maneira de entrar e filmar. Tem muita gente fazendo isso, para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis. Isso nos ajuda” – 11 de junho de 2020 (41.058 óbitos e 805.649 casos);

“É um testemunho meu. (A hidroxicloroquina) Deu certo e estou muito bem. Aqueles que criticam, apresentem uma alternativa” – 9 de julho de 2020 (1.755.779 mil casos e 69.184 mil óbitos);

Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde demitido pelo presidente Jair Bolsonaro – Foto: Orlando Brito

“Tivemos lá um médico (Mandetta como ministro), um primeiro médico lá, olha a desgraça que foi” – 10 de julho de 2020 (1.800.827 mil casos e 70.398 mil mortes);

“O Lockdown matou 2 pessoas para cada 3 de Covid no Reino Unido. No Brasil, mesmo ainda sem dados oficiais, os números não seriam muito diferentes” – 9 de agosto de 2020;

”De forma covarde e desrespeitosa aos 100.000 brasileiros mortos, essa TV festejou essa data no dia de ontem, como uma verdadeira final da Copa do Mundo, culpando o Presidente da República por todos os óbitos – 9 de agosto de 2020 (101.136 mortos e 3.035.582 infectados);

 “Chegou na minha tela aqui, o presidente da Anvisa, o almirante Barra, acabou de confirmar a informação sobre a hidroxicloroquina e a ivermectina, você já pode comprar com uma receita simples caso seu médico recomenda, obviamente” – 13 de agosto de 2020 (105.564 mortos e 3.229.621 casos);

“Tem algum médico aí? A eficácia dessa máscara é quase nula” – 20 de agosto de 2020 (3.501.975 casos e 112.304 mortes);

“Tem que deixar de ser um país de maricas” 10-11-2020 (5.699.005 casos e 162.802 mil mortes);

“Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha” – 11 de novembro de 2020 (5.747.660 casos e 163.368 mil mortos);

“Sobre a vacina, parece que tem coisa esquisita aparecendo, mas não vou falar, para evitar polêmica” – 12 de novembro de 2020 (5.779.383 casos e 164.234 mil mortes);

“E agora tem essa conversinha de segunda onda” – 13 de novembro de 2020 (5.819.496 casos e 164.946 mortos);

“Da máscara eu não vou falar muito porque terá um estudo sério falando da efetividade, se ela protege 100%, 90%, 80%. Falta apenas o último tabu a cair” – 26 de novembro de 2020 (6.204.220 casos e 171.460 mil óbitos)

“Não adianta começar a fechar tudo de novo. Um lockdown mais rígido acarreta mais mortes’” – 10 de dezembro de 2020 (6.781.700 casos e 179.765 mil mortes);

“Se você virar um chi… virar um jacaré, é problema de você, pô. Não vou falar outro bicho, porque vão pensar que eu vou falar besteira aqui, né?” – 17 de dezembro de 2020 sobre o imunizante da Pfizer (7.110.433 casos e 184.826 mil mortes);

“Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso. Ou, o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas” – 17 de dezembro de 2020;

“A pandemia está chegando ao fim. Estamos com uma pequena ascensão agora, o que chama de um pequeno repique, pode acontecer” – 19 de dezembro de 2020 (7.200.708 casos e 186.205 mil mortes);

“A pressa para a vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas – 19 de dezembro de 2020 (7.212.670 infectados e 186.365 mil mortes);

“Parece que a eficácia da vacina de São Paulo está lá embaixo. Não vou divulgar percentual aqui, porque se eu errar 0,001%, eu vou apanhar da imprensa. Mas parece que a eficácia está lá embaixo, em relação à outra [vacina]” – 24 de dezembro de 2020 (7.423.945 casos e 189.982 mil mortes);

“Abaixo de 40 anos, quase ninguém contrai. Ou se contrai, é assintomático. Para que esse pavor todo? A vida tem que continuar. Eu não errei nenhuma. Quando eu zerei o imposto da vitamina D, vocês me criticaram – 28 de dezembro de 2020 (7.504.833 casos e 191.570 mil mortes);

Bolsonaro em seu discurso no Planalto – Foto Orlando Brito

“Falam tanto em máscara. O tempo todo essa mídia pobre falando: “o presidente sem máscara”. Não encheu o saco ainda, não? Isso é uma ficção. Quando é que nós vamos ter gente com coragem, que eu não sou especialista no assunto, para falar que a proteção da máscara é um percentual pequeno? A máscara funciona para o médico, que está operando uma máscara específica. A nossa aqui, praticamente zero” – 31 de dezembro de 2020 (7.675.973 casos e 194.949 mortes);

“Sabia que o tio estava na praia nadando de máscara? Tava nadando de máscara? Mergulhei de máscara também, para não pegar covid nos peixinhos” – 5 de janeiro de 2021 (7.810.400 casos e 197.732 mil mortes).

Em mais de 300 declarações, nenhum lamento, solidariedade, compaixão ou empatia com as famílias das vítimas da incúria ao longo desses dois anos. Em 25 de janeiro de 2022, quando morreu o expoente da estupidez, desses que questionavam a origem comunista e até a existência do vírus, o capitão do mato e da escuridão manifestou pesar com a morte da marca do esgoto bolsonarista. Eram 623 mil mortos e 24.334.072 infectados: “Nos deixa hoje um dos maiores pensadores da história do nosso país, o filósofo e professar Olavo Pimentel de Carvalho.

Olavo foi um gigante na luta pela liberdade em um farol para milhões de brasileiros. Seu exemplo e seus ensinamentos nos marcarão para sempre”. O capitão da milícia decidiu transformar a pandemia em endemia por decreto. Exatamente como “acabou” com a corrupção. São as memórias inapagáveis do maior flagelo que atingiu o Brasil ao longo de sua história. Séculos não bastarão para recompor o país. As memórias são fúnebres, tristes e criminosas.

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