Liberdade de expressão sem civilidade e urbanidade é ataque à democracia

A liberdade de expressão, consagrada na Constituição Cidadã, de 1988, permite a todos o direito de se manifestar livremente e sem censura prévia. Até onde, porém, este é um direito absoluto? Esta liberdade tolera até mesmo os que querem destruí-la? Neste artigo, os autores questionam os limites do direito de expressão

Se éramos racistas, homofóbicos, machistas, misóginos? Sim, quanto a isto nem há necessidade de lermos pesquisas ou estudos que comprovam que sim. Mas depois que elegemos (e já queremos aqui adiantar que nosso voto foi #EleNão) um presidente com estas “características” tão intrínsecas, virou cult o cometimento de delitos e crimes em nome da chamada liberdade expressão. Como pergunta um amigo, conhecedor e cumpridor do que “manda a Lei” por força do ofício: desde quando liberdade de expressão se confunde com liberdade para agredir, caluniar, difamar, coagir?

Se a guarida do guarda-chuva do “direito” ao livre manifestar faz justificar tais enfrentamentos das leis, convém lembrar aos desavisados que o direito à liberdade de expressão, expresso em nossa Constituição e tão salvaguardado em outros países, não é um “Direito Absoluto”, ou seja, ele não se sobrepõe a outros direitos e garantias fundamentais da Carta de civilidade e urbanidade que adotamos neste país e no mundo. Pois se racista és, homofóbico te declaras, machista te assumes e misógino nem te reconheces – pois talvez nem saibas o que isto significa -, ao menos cumpridor da lei deverias ser, se não queres punições sofrer pautadas em artigos da Carta Magna. O ditado popular é conselheiro: O diabo sabe para quem aparece! Certamente não te “aparecerás” para a Justiça devidamente togada com poderes de te encarcerar.

E vamos em frente mostrando que nem sempre os que fazem cumprir a lei, se põem a ter respeito por ela. Vide o caso da juíza que, frente a uma decisão em direito penal, declarou nos autos que um homem deve ser preso pelo mais aviltante argumento de que, em razão da “cor da sua pele”, ele é um potencial membro de facção criminosa. E mais: um delegado da Polícia Civil é desacatado por ser negro – pois um “cidadão branco” não poderia imaginar que o homem com a cor da pele diferente da sua se tratava de autoridade, afinal “autoridades” devem ser como ele: brancas!

Estamos mesmo a assistir o racismo como se naturalizado devesse ser. Isto que não estamos a falar do extermínio de jovens negros por policiais, também negros, em nome da “segurança” dos pagadores de impostos deste país. Tampouco da falta de oportunidades para a população negra em razão da dívida histórica do Estado por lhes ter abandonado à própria sorte depois de “libertos” da escravidão imposta por esta Nação. Sigamos… Como? Não sabemos!

No debate democrático propositivo, por mais que discordemos de nossos adversários, não podemos nos furtar a escutá-los e entendê-los para refutar argumentos e sugerir aquilo que defendemos. Mas para que isso aconteça, é preciso que os lados em disputa tenham equivalência em suas propostas, no sentido de haver um equilíbrio em falar, escutar, aceitar ou divergir. Vejamos um exemplo: quando um lado defende um sistema de ensino mais voltado para as potências de nossos estudantes e que permita liberdade de pensamento e igualdade de entrada no mercado de profissões para todos e todas com abertura para uma variedade de ciências – das exatas às humanas -, enquanto o outro lado defende um ensino mais técnico voltado para o mercado, privilegiando determinadas ocupações consideradas mais produtivas, sem políticas que corrijam desigualdades históricas, fazendo com que a escola apenas reproduza uma sociedade hierarquizada, meritocrática e excludente. Ainda que a segunda opção gere aniquilamento e morte a longo prazo, as duas opções são possíveis e vivemos a maior parte de nossa democracia moderna nesta que é a mais devastadora. Nem por isso, ela deixa de ser uma opção válida para mercados, economistas, políticos e boa parte da sociedade que lhes dá sustentação e por outra que vive na expectativa de “furar a bolha” ou encontrar caminhos para “superação” das barreiras. E muitos encontram… 

Conceituando o fascismo

É diferente quando temos de um lado do debate expressões totalitárias, como o fascismo. Pior: quando de saída se elege como inimigo os dois lados citados no exemplo acima. Ao colocar esquerda e direita no mesmo saco do comunismo globalista e demonizar (literalmente) os seguidores dessas linhas, o fascismo travestido de extrema-direita nos atesta que qualquer um é seu inimigo. Qualquer diálogo, por natureza, é ou deveria ser sempre aberto ao contraditório. Mas parece não haver diálogo com aqueles que insistem em se fazer ouvir através da força bruta, pois a crença de que qualquer um que discorde dele é seu inimigo faz com que ele não escute argumentos e passe a atacar não o argumento, mas a pessoa que o defende, usando para ofender palavras que não possuem, por si mesmas, potencial ofensivo, como comunista, petista, feminista, negro, homossexual, “macumbeiro”… Ou seja, o discurso é um só: criminalizar a diferença! Ele vê como defeito qualquer coisa ou pessoa que seja diferente da sua fantasia “ariana” de ser branco, macho, heterossexual, cristão, capitalista – ainda que só mesmo na fantasia ele seja de fato assim.

Historicamente, o fascismo esteve diretamente ligado a governos totalitários como a Itália de Benito Mussolini e outros que surgiram entre as duas grandes guerras mundiais. Compartilhavam de um mesmo modus operandi: o culto a líderes com um certo fanatismo, a promessa de fim da corrupção e a criação de “inimigos do povo” que eram, geralmente, determinados grupos étnicos, como os judeus na Alemanha de Hitler, ou mesmo segmentos da população identificados com “valores não tradicionais da sociedade”. O fascínio que o fascismo exerce está sobretudo no oferecimento de soluções fáceis, mas extremamente perigosas, que envolvem a supressão das diferenças materializadas nos supostos inimigos.

Mas é possível pensar nestas ações e ideias totalitárias para além dos governos, uma vez que tais governos são sustentados por pessoas reais que costumam se manter fiéis, não apenas por concordarem com esses líderes mas, principalmente, por se identificarem com eles. Quando tais formas de governo são proscritas e coibidas pela força da lei, como a Constituição das democracias contemporâneas, não necessariamente se evita, no entanto, que tais pensamentos vivam entre nós, irrompendo em situações específicas que exigem respostas firmes do Estado de direito. Mas quando tal pensamento conquista um certo “lugar de fala” e passa a ser normalizado, estamos realmente em perigo enquanto Nação.

Há quem diga que essa “gente” saiu do “armário” nos últimos anos, tomando emprestado um termo bastante importante para pensar nos sujeitos LGBTs quando estes assumem suas identidades sexuais e/ou de gênero. É injusto atribuir essas duas situações como semelhantes – a não ser que estejamos dizendo que essa “gente” vivia a opressão de um comunismo que transformaria o Brasil em Cuba, ou que foi vítima de uma “ideologia de gênero” que implantaria a qualquer custo uma ditadura feminista ou gay. Essa “gente” não saiu do armário, mas do nosso passado recente de país que tem crimes da ditadura civil/militar em seu encalço.

Sempre esteve por aqui, na figura do tio estuprador pai de família zeloso, do policial torturador-sufocador, do religioso que quer exorcizar os demônios alheios (quem dera que desse conta dos seus próprios). Eram tipos que até pouco tempo nos inspiravam raiva, pena ou mesmo gargalhadas com suas teorias da conspiração e terraplanismos, tamanha era nossa confiança na ciência, nas instituições democráticas e na Constituição de 1988, pensada para evitar retrocessos civilizatórios, e por isso chamada de Carta Cidadã.

Falhamos, falhamos muito e nossa abertura ao contraditório pautada na liberdade de expressão do pensamento permitiu que levássemos a sério o neofascismo, disfarçado no combate a um Estado corrupto. Uma versão da história, tal qual uma Fake News que foi brotando nas redes sociais, ganhando espaço nos noticiários da mídia tradicional, avançando e tomando forma com o aval dos “formadores de opinião” travestidos de comentaristas de programas noturnos.

Homenagear torturadores se tornou algo corriqueiro e os que assim o fizeram tiveram amplo apoio do chamado mercado e da mídia “bem relacionada”. Passaram todos a rir das piadas racistas e homofóbicas como quem acha graça do “tiozão sem noção” em festa de família. Agora estão aí – mercado e grande mídia – atordoados, pois perceberam que não se dá meia-volta em uma queda num abismo ou, pior, que a serpente começa a comer o próprio rabo e transforma amigos em desafetos na primeira desavença ou na primeira “livre expressão do pensar”.

Aqueles e aquelas que num passado recente apoiavam a censura, passaram a dar mais valor ao que a Carta Magna defende como liberdade de expressão e de imprensa, mas deturpam os artigos da lei, uma vez que há crimes previstos quando essas mesmas liberdades ensejam calúnia e difamação. Ou seja, temos liberdade de informar e de nos expressar, desde que seja a partir de fatos, ideias e atitudes que não signifiquem a produção de um crime cometido contra o outro.

Liberdade e Responsabilidade

A dificuldade está em fazer compreender que as palavras liberdade e limite podem estar na mesma frase, pois não são incompatíveis. É preciso que se compreenda que a liberdade é um fundamento da vida em sociedade e que é sim fazer o que se quer e deseja, porém a liberdade de um termina quando começa a liberdade do outro. O Brasil assiste ao crescimento desse pensamento totalitário e não nega seu conteúdo fascista, uma vez que há até a confecção de dossiês com a criminalização do antifascismo, com o aparato do Estado como recém noticiado pela imprensa brasileira.

Mais sórdido e vil, supostamente em nome da liberdade de expressão, uma ativista das redes sociais que já foi servidora do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (pasmem) e cumpre prisão domiciliar por insultos aos ministros do STF, divulga o nome de uma menina de 10 anos, vítima de estupro, e o endereço do hospital em que ela realizaria um aborto previsto em lei para salvar sua vida, mobilizando grupos supostamente cristãos que passam a ameaçar a integridade física da própria vítima e dos médicos. Temerário também, em plena pandemia, quando este mesmo governo se utiliza da liberdade de opinião para prescrever medicamentos sem eficácia e nega uma doença e as pesquisas científicas sobre ela, “empurrando” para a morte milhares de trabalhadores que não têm outra opção de sustento, enquanto aqueles que de fato têm capital e detêm os modos de produção enriquecem e ganham mais e mais subsídios governamentais.

Por isso, é necessário reforçar que para atitudes totalitárias só a “letra fria da lei” e o que prevê nossa Constituição, já que ela mesma é a norteadora dos limites civilizatórios e nega a possibilidade de aceitação do racismo, do machismo, da misoginia, da homofobia, da tortura ou da barbárie. Se nossa Constituição continuar a ser utilizada e aviltada inclusive em nome do Estado, em favor da derrocada da civilidade e do desprezo pelos balizadores mínimos de urbanidade, vai faltar “Tribunal de Haia” para reconstruirmos um Brasil possível. Se é que ainda é possível!

* Ana Paula Barreto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Comunicação Legislativa pela Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis). Foi chefe de Comunicação da Secretaria das Relações Institucionais da Presidência da República e assessora de imprensa no Senado Federal. Atualmente é responsável pelo comando da comunicação do escritório Cezar Britto & Advogados Associados

* Marcos Aurélio da Silva é doutor em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e  professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural, com estudos sobre relações de gênero e sexualidade, saúde da população LGBT e políticas públicas 

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