“Lá fora a vida passa e eu aqui à toa”

Em seu texto de estreia n'Os Divergentes, a jovem Amanda Starling divaga, como ela mesma descreve, sobre o autoencarceramento da classe média durante o isolamento social e os anônimos que abarrotam as penitenciárias Brasil adentro. Como comparar nosso tédio com a insanidade que ronda as prisões?

Em meio à pandemia de covid-19, tenho tido muito tempo livre. Esse tempo tornou-se ainda maior, quando, na sexta-feira passada, me vi como “estatística de desocupação”, causada pelo novo coronavírus: informaram-me que meu contrato de estágio havia sido rescindido. Adaptada a uma rotina agitada, vi-me, de repente, “folgada”. Teria apenas de cumprir a carga de aulas on line. Com todo esse tempo vago, a mente se torna uma usina de ideias. Há quem diga que mente vazia é oficina do diabo. Será?!

Tardes longas e tediosas. Como em uma canção que fez muito sucesso algum tempo atrás, “lá fora a vida passa e eu aqui à toa”. Deitada sobre minha cama, sem aparentemente ideia alguma do que mais eu poderia fazer para que o tempo passasse, subitamente, indaguei-me: “O que será que os presos fazem o dia inteiro?” A “oficina do diabo” encheu-se de empatia: um ser humano metido em uma cela.

Presidiários – Foto: Agência Brasil

No terceiro período da faculdade de Direito, visitei um presídio com meus colegas. Recordo-me bem desse dia; tenho lembranças que ainda me acompanham e me acompanharão pelo resto da vida. Foi um choque de realidade. Nunca havia visto nada igual ou parecido com o que presenciei. Conversamos de maneira rápida e supérflua com alguns dos presos. A maioria se mantinha de cabeça baixa e em silêncio durante todo o tempo. Como quem estivesse envergonhado. (Invejavam-nos, certamente). Os que conversavam eram sempre presos “bem comportados”: encontravam-se em regime semiaberto e podiam trabalhar.

Lembro-me de que um deles nos mostrou um gorro de crochê feito por ele próprio. Quase todos expressavam ignorância sobre suas condutas. Se tinham consciência, externavam arrependimento. Falavam, ainda, da necessidade de buscar a Deus. Todos os olhos estavam voltados para aquele grupo de estudantes. Tive a sensação de estar sendo milimetricamente analisada. Alguns olhares curiosos, outros furiosos. Senti-me como se minha liberdade estivesse sendo cobiçada.

As instalações mal davam para uma pessoa viver com dignidade ou, ao menos, ser chamada de ser humano. Era um galpão escuro, sem janelas, sem circulação de ar, com cheiro forte e extremamente desagradável. Por óbvio, não fugia à regra de superlotação, essa tragédia que se abate sobre qualquer prisão no Brasil. O nosso sistema prisional chega a 750 mil pessoas, a terceira maior do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, e a China. Metade desse número vive em regime fechado.

De acordo com a lei, o acesso dos presos à educação e ao trabalho dentro ou fora dos presídios é imperativo. Quanta utopia! Apenas 18% possuem acesso ao trabalho; 14% à educação. Bastam estes dados para julgar procedente meu questionamento: o que faz um preso ao longo de um dia?

Durante a pandemia, muito se vem discutindo a respeito de como manter a saúde mental em tempos de isolamento social. Confesso que, mesmo socialmente privilegiada, um dia acabei tendo um “surto”! Eu precisava sair de casa! Precisava da minha liberdade! Mas, o que é liberdade? Ir e vir, simplesmente? Falar o que se quer, sem barreiras? Estava farta das celebridades no “Instagram”, realizando “lives” a respeito da importância de manter-se são e dando receitas de como fugir da ansiedade e depressão. Um levantamento feito pela UERJ, mostrou que os casos de depressão aumentaram em noventa por cento no intervalo de pouco menos de um mês, desde o reconhecimento oficial da pandemia. Crescem o medo, a incerteza, o caos econômico e a solidão…

E as soluções apresentadas parecem ser sempre as mesmas: “assista a um filme, aprenda uma língua nova, faça exercícios, pratique ioga, leia um livro, asse um bolo”. Pensando a respeito de tudo que estava sentindo, da vontade incontrolável de reencontrar meus amigos e família, do nada me coloquei no lugar daqueles que estão encarcerados.

Talião e o conceito de equivalência

A prisão tem por objetivo, teoricamente, retribuir e prevenir condutas desviantes do padrão socialmente dominante. A sanção pelo ato praticado vem do desejo histórico da sociedade em punir, que poderia condensar-se na velha Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente.” Já a prevenção basear-se-ia na recuperação do criminoso, na busca de sua ressocialização, de sua reinserção, como individuo “recuperado”, na sociedade.

Recuperar um ser humano? O que seria isso? Como?

Ainda se fala muito pouco, em meio a expedientes de ressocialização, a respeito do adoecimento mental em instituições prisionais. Segundo pesquisa feita nos EUA, pouco mais da metade de todos os detentos norte-americanos teve problemas de saúde mental.

Causas? A quebra de relacionamentos, o isolamento, a ruptura abrupta das atividades cotidianas e a ociosidade.

E não é justamente como estamos nos sentindo, encarcerados em nossas próprias casas? Em prisão domiciliar. Mas, por qual delito? Se ficar em casa durante alguns meses, com todo o entretenimento disponível, está nos deixando doentes, como seria passar anos trancado sem sequer ter acesso à educação e ao trabalho? Como vamos reabilitar alguém e reinseri-lo na sociedade, se estamos deixando que esse mesmo alguém se torne um doente mental?

Enquanto continuo divagando, nesses dias em que, como cantava o Biquini Cavadão, “as horas não dizem nada”, outros, lá fora, não lutam contra o tédio; lutam contra a fome, correndo o risco de serem mandados para um presídio. E dentro dos presídios a pandemia se espalha, não dando chance ao tédio ou à ressocialização. A morte chega primeiro.

* Amanda Starling de Azevedo Bahia, 20 anos, é estudante na Faculdade de Direito Milton Campos (MG).

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