Inútil latim para entender Caim

O governo Bolsonaro acabou antes mesmo de começar. Inócua constatação. De verdade, este governo até agora não existiu e tudo o que promoveu foi pelo avesso, ou seja, desgovernou

Os últimos acontecimentos ‘políticos’ foram por demais exaustivos para quem ainda se dá ao patético trabalho de perguntas elementares a uma mente cognitiva disposta a olhar a realidade e dirimir complexidade. A primeira delas é O QUE ? E a primeira resposta não é, pronto e acabado, um achado, mas um rebate intuitivo com base em repertório de experiências pretéritas. Mas, e quando o Objeto (aquilo que está posto diante do observador) é desprovido de sentido lógico? O atual desgoverno brasileiro é, imprecisamente, massa amorfa, caótica, precisando de alguma compreensão, mas sem hipótese para tal.

Tenho ganas de atalhar os que ainda acorrem com saberes, jurisprudências, magnitudes acadêmicas e titular posse de colunas políticas com dezenas de anos em diagramação cativa. De tudo que tenho visto, lido e ouvido, o senso comum vem ganhando de 7 a 1 do senso crítico sedimentado. Ocorrem-me diagnósticos curtos e diretos de pessoas simples que, diante do nefasto, saem com tiradas, tipo assim (expressão em voga, da moçada): não vale a pena gastar vela com defunto ruim. Ou: inútil essa gastança de latim. É, pois, o lugar da mirada metodológica em que ‘o Brasil’ se encontra e demanda luz sobre obscurantismos, mas, nem sempre o absurdo é material empírico para inferências abstratas.

Sepultamentos no Brasil da pandemia do novo coronavírus

Não fossem as contingências sanitárias, o imaginário social daria conta do enquadramento devido nessas conjunturas, saberia carnavalizar. O que não tem juízo serve ao humor, charge, caricatura e outras troças para acabar de desconstruir o que já se desapetrecha. Acontece que o momento é de muita dor, contrição, misericórdia e não cai bem alguém, em cenário de penúrias, sequer um funeral digno, promover gargalhadas. Estamos em uma conjuntura infectar, talvez a mais singular na história, a morte com a sua foice, e tendo gostado especialmente daqui. Como se anunciasse, folgadamente: vim da China, mas arranchei foi no Brasil. E tal como a Gripe Espanhola não era da Espanha, o Covid-19 gostou de se associar a outras tragédias, notadamente o negacionismo que o hospedou.

Outrora, quando a autoestima estava no ralo, se ouvia uma paródia de Caetano e Gil: “O Haiti é aqui”. Quem dera! O Brasil de hoje é muito mais perturbador, muito mesmo, aqui e ‘lá fora’. Mas, enrolei demais, vamos ao ponto: este governo não tem solução pelo simples fato de não ser. É qualquer coisa, menos um governo. Só que a ficha demorou a cair, como diz a moçada. E as poucas fichas, as promessas, os arroubos, as turras… o gás foi se acabando e a turbina que se prometia virou uma caixa de malefícios e de uma sortida coleção de autocomplicações, muitas delas meramente declaratórias.

Agora, é comum se ouvir, que este governo se acabou mesmo sem começar. Inócua constatação. De verdade, este governo até agora não existiu e tudo o que promoveu foi pelo avesso, ou seja, desgovernou. Aí, sim, embrenhou-se numa tarefa de desmanchar o que uma suposta Esquerda deixou pronto. E cedo se esgota a análise, não há mantimento para seguir com ela. Então, por que ficar desperdiçando hermenêutica jurídica e ciência política para entender o que não existe? Este suposto governo que está aí não merece reflexão, não merece miolo, massa cinzenta, não vale os queixumes nas redes sociais, interjeições e xingamentos, coisas do ‘Gente, o que é isso… Que loucura?’. E o compreensível esbarra aqui. No máximo a falsa polaridade: de um lado, os que não veem governo algum; de outro, os que apelam: ‘Deixem o governar, vamos botar a bola no chão’. Bola, jogo, regras, quem contra quem?

A enganação tem prazo de validade. E já há algum tempo se lê nas redes ditas sociais: “Eu avisei!”. Mas, como diria o Chico Buarque, o que será, que será, que todos os avisos não vão adiantar? Estamos, pois, colhendo os resultados de um grande infortúnio eleitoral, quociente de pelo menos três fatores da campanha eleitoral: a) chega de PT; b) bota um militar; c) ele é o mito, porque é punk. E havia também um componente depressivo: depois de Temer, pior não fica. E se o mito parecia melhor que o Tiririca, qual o problema? O problemão está aí. Fazer o que com ele, sem alquebrar as instituições? A resposta todo mundo sabe, mas as excelências de toga ficam lá na torre tecendo erudições laudatórias em torno dos tais ritos, mas, até que esses rituais se cumpram, os desastres vão atordoando, se avolumando e resvalando ‘lá fora’, no pomposo ‘panorama internacional’.

Já há vozes ‘lá fora’ propondo que não se façam negócios com quem dizima florestas, ameaça indígenas, quilombos, liberdades fundamentais e não arreda de um negacionismo espantoso.  Antes, causava espanto por não usar uma simples máscara. Agora, insufla agitadores à invasão de hospitais e UTIs, forma mais radical de ‘provar’ que essa quantidade toda de mortes é alarmismo de governadores estaduais e prefeitos oportunistas, de redutos comunistas ou de um determinado telejornal ávido por audiência movida a sensacionalismo.

O presidente Jair Bolsonaro cavalgando na Esplanada dos Ministérios, em Brasília – Foto: Orlando Brito

O Chefe da Nação não tira da cabeça a convicção de que há conspirações por todos os lados, delas resultando estatísticas mentirosas, por sua vez maliciosamente exploradas por uma imprensa que só se interessa pelos mortos e não pelos que sobreviveram. Manda demitir, manda alterar os cálculos, sabota a divulgação, acena de helicóptero confiante na ‘imunidade de rebanho’ e desfila a cavalo pela Esplanada, para o delírio hipnótico dos seduzidos. Com sinceridade, respondam: este senhor carece de alguma erudição para explica-lo? É alguma esfinge à espera de ser decifrada? Enredo pobre: ele é a Constituição; ele é o Estado; ele é a única personalidade a ser cultuada.

Cansaço, cansaço e cansaço. E o mais incrível é que o negacionismo engendra fantasias as mais estapafúrdias, desacreditadas até por quem seguia as versões de uma realidade grotescamente desenhada pelos robôs das fake news. As pregações, de tão ridículas, viraram memes, entre eles mesmos. Sérgio Moro, outrora o paladino do combate à corrupção, revelou-se, finalmente, no que é: um agente vermelho do comunismo. Sara Winter? Mal chegou o inverno nos redutos nazis e a Sara Fernanda Giromini foi desmascarada, não passaria de uma mutação ideológica de feminismo com petismo, uma provocadora infiltrada, provocadora, treinada para confundir os verdadeiros 300s. E tome negacionismo!

Uma vez, provocado sobre o paradeiro de Queiroz, o Chefe respondeu na bucha: “Está com a sua mãe”. Não. Sabe-se, agora, estava num escritório de advocacia, onde as paredes ostentam cartazes pró-intervenção militar e pro-AI-5. Foi preso na casa de alguém que se diz ser uma espécie de alter ego do Presidente da República, sendo os dois indissociáveis. E é também um negacionista. Trata-se do advogado Frederick Wassef, sócio de Solveig Fabienne Sonnenburg, com quem divide a casa onde Queiroz foi encontrado, mas, negou, ‘não é nada disso que a imprensa mostrou’.

O advogado Frederick Wassef e Flávio Bolsonaro – Foto Orlando Brito

Queiroz não estava naquela casa. Invenção da delegada, que ficou declarando que ele se escondia ali há pelo menos há um ano. Wassef, ao ser interpelado pela repórter Andréia Sadi, negou e negou: “Como que ele entrou lá? Pulando o muro? Voando? O próprio Presidente disse que ele estava lá porque fica perto de onde faz tratamento de câncer!”. Então, o advogado, que tem passe livre no Planalto, no Alvorada e na família derivou: “Não sei como o Presidente obteve esta informação. Não vou adiantar a minha linha de defesa, seria uma infidelidade para com o meu cliente”. Referia-se ao Presidente. Quanto ao Queiroz, ele nem o conhece. E como é que o fantasma da “rachadinha” foi aparecer por lá, sentado numa vasta cama de casal?

Cansaço, cansaço e cansaço. A tragédia de um milhão de infectados e quase 50 mil mortos pela “gripezinha” não passaria de um pano de fundo, um oportunismo para toda a sorte de conspiradores contra um homem, consagrado por seguidores  fervorosos, a ponto de ser representado pela própria Cruz de Cristo, numa encenação de via crucis pela Esplanada dos Ministérios, uma vítima dos esquerdopatas e de um Supremo demonizado, mas do qual não se pede mais o fechamento, o cartaz agora é outro: “Supremo é o povo”.

Getúlio Vargas no Palácio Catete

Ou seja, ou as senhoras instituições constitucionais se convencem de que as inconstitucionalidades já foram longe demais, ou a História irá relatar que houve uma vez um excelente presidente, mas os conspiradores não o deixaram em paz. Houve no passado um certo político maldito, acusado de ter levado Getúlio Vargas ao suicídio. Negou que fosse iconoclasta, derrubador de mitos. Ao ser indagado sobre como reagia às acusações de que era uma emérito derrubador de governos, Carlos Lacerda saiu-se com esta: “Eu não derrubo governos, eles caem de podre”. Será que não? Veja-se o desfecho do caso Weintraub. Antes de desertar, um último desaforo. Não mais uma bravata contra os “vagabundos” do STF, mas uma canetada para tripudiar dos bolsistas negros, índios e deficientes. Quem é de Caim não se esgota na sua índole.

Que exílio dourado, este do economista Weintraub! Uma vez economista, sempre economista.  Se foi economista num banco privado, por que não o será no Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird)? Filigrana, se o primeiro era comercial e o outro é emergencial. Até rima. E depois, o primeiro banco a gente nunca esquece. Quem sabe, ‘lá fora’, ele prepare, no universo paralelo de suas crenças, algum repositório de fugitivos. Não era o que a senhora Giromini pretendia? Um asilo diplomático para cair fora antes da prisão? Ora, por que a diplomacia negou-lhe refúgio?

Refúgio é o que precisamos todos nós, em nossa modesta conspiração para nos esconder do Covid-19. Que Deus nos proteja dele. Do governo parece que é bem mais difícil. Que imunidade ele tem, que resistência, que teima! Mas, quem está no alto pode cair. E quanto mais alto, mais se racha quando despenca.

— Luiz Martins é jornalsita e professor dos cursos de Comunicação da Universidade de Brasília

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