Forças Armadas, populações indígenas, Gilmar Mendes e o genocídio

Bolsonaro e Gilmar Mendes - Foto Orlando Brito

A semana de 13/07 iniciou com uma reação coordenada do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, pedindo à Procuradoria Geral da República que apure as circunstâncias das declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, feitas no sábado, dia 11, em live promovida pela revista Isto É. Em alusão à ocupação militar promovida por Jair Bolsonaro no Ministério da Saúde, com consequências negativas para o combate à epidemia da covid 19, que ele vê como fora de controle, disse Gilmar: “Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.

O general Pazuello – Foto Orlando Brito

No mesmo evento, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta foi igualmente duro com a entrega do Ministério ao general Eduardo Pazuello e um séquito de mais de 20 militares. Da ativa, como Pazuello, e da reserva, todos obscenamente incompetentes para a contenção da crise sanitária que já matou mais de 73 mil brasileiras e brasileiros, a maioria pobres e historicamente desassistidos. Para Mandetta: os militares comandados por Pazuello seriam especialistas em “balística” em vez de “logística”. “Eu só vejo é acúmulo de óbitos nessa política que está sendo feita”, disparou certeiro o ex-ministro. Em outras palavras, Mandetta chamou o ministro da Saúde e seus comandados de criminosos, e criminosos treinados para não errar seus alvos.

Ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta – Foto Orlando Brito

Gilmar Mendes e Luiz Henrique Mandetta não mediram palavras para denunciar os crimes diários que estão sendo cometidos por Jair Bolsonaro e seu Ministério da Saúde. E, ao assim procederem, reforçam o fato, que já nem cabe mais discutir, de que o Presidente da República tem que ser impedido. Como imperativo democrático e constitucional, e como imperativo humanitário.

Dito isso, não há como desconhecer que o ministro do STF, que, aliás, não é conhecido por sua temperança, pode ter ultrapassado o limite retórico permitido a um magistrado, e magistrado da mais alta Corte, ao dizer, pré-julgando, que o Exército brasileiro poderia estar se associando a “esse genocídio”. Ainda que não fosse a primeira vez que ele manifestasse essa opinião sobre a irresponsável conduta do governo diante da epidemia da covid-19 no Brasil. Opinião que agora poderá ter que sustentar, ou dela se retratar, diante de um eventual questionamento pela Procuradoria Geral da República.

Mas, deixemos Gilmar Mendes de lado por um momento e busquemos enxergar melhor a reação das Forças Armadas, por intermédio de seus mais altos comandos, diante da hipótese de estarem se associando a um genocídio. Não sem antes comentar a reação do vice-presidente, general Hamilton Mourão, cobrando “grandeza moral” de Gilmar Mendes, ao exigir dele uma retratação. Grandeza moral é tudo o que Mourão, o ministro da Defesa, ou quem quer que seja desse governo, não podem cobrar de ninguém, diante da baixeza moral do indivíduo que eles sustentam na Presidência da República.

O que vai ser argumentar aqui é que a reação das Forças Armadas deve ser vista também à luz dos termos do ofício que o senador Fabiano Contarato (REDE – ES) enviou, em 13 de julho, ao Alto Comissariado dos Direitos Humano da ONU, denunciando Jair Bolsonaro por “descaso em proteger os povos indígenas durante a pandemia do novo coronavírus”. Denúncia fundamentada nos vetos de Bolsonaro à Lei nº 14.021, de 08/07/2020, que dispôs sobre medidas de proteção a povos indígenas durante a pandemia de covid-19.

O presidente Bolsonaro e o vice Mourão – Foto: Orlando Brito

Vetos apostos aos dispositivos da lei que determinavam que o governo deveria garantir “a oferta emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva” e a compra de “ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea”. E mais: Bolsonaro excluiu a obrigação do governo liberar verba emergencial para a saúde indígena e facilitar o acesso de indígenas e quilombolas ao auxílio emergencial, além de vetar também as partes que obrigavam a União a garantir “acesso a água potável” e distribuir de forma gratuita “materiais de higiene, limpeza e de desinfecção para as aldeias”, bem como assegurar o acesso à internet nas aldeias, além de distribuir cestas básicas.

A justificativa foi a de que as medidas criavam despesas obrigatórias, ainda que sem especificar o “respectivo impacto orçamentário e financeiro”, o que caracterizaria a inconstitucionalidade dos vetos.

À denúncia do senador juntemos agora três manifestações de personalidades públicas; duas de membros – um já ex-membro – do governo. A primeira veio do general Mourão, no dia seguinte aos vetos, em entrevista coletiva, após reunião do Conselho da Amazônia, que ele preside. Ao minimizar os vetos, o vice-presidente afirmou, referindo-se à água potável, em uma declaração moralmente insensível e objetivamente questionável: “o indígena se abastece da água dos rios que estão na sua região. Se, porventura, algum rio daqueles for contaminado por atividade ilegal, notadamente garimpo, com o uso de mercúrio, então, se leva água para esses grupos”. A segunda, veio do ex-ministro Abraham Weintraub, da Educação, na infame reunião ministerial do dia 22 de abril último, quando deixou claro odiar a expressão “povos indígenas”.

O professor Ricardo Galvão

A terceira veio de ex-presidente do INPE, Ricardo Galvão, em entrevista ao Em Pauta, da Globo News, no dia 13 de julho último. Relembrando a participação em um Globo News Painel, logo após sua demissão, junto com o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e Marcelo Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio, afirmou que, naquele dia, encerrado o programa, ouviu expressamente de Salles, na presença de Brito, que o governo jamais mudaria sua política para a Amazônia, porque Bolsonaro tinha sido eleito com ‘100% dos votos dos garimpeiros e madeireiros da região’. O que sintetiza mais que tudo o que pensa o governo sobre a sobrevivência das populações indígenas.

 

Indígena em manifestação em Brasília – Foto Orlando Brito

Não foi, portanto, à toa, dado esse intrincado, mas coerente, quadro de descaso criminoso contra a população brasileira em geral, e contra o seu segmento historicamente mais vulnerável em particular, que o ministro da Defesa e os comandantes das três Armas saíram à caça de Gilmar Mendes, e aqui tomo emprestadas as palavras do jornalista Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo, que ontem escreveu: “O medo de serem alvo de investigação por genocídio de povos indígenas em razão da acusação de inação do governo federal diante da pandemia de covid-19 foi o que provocou a reação do Ministério da Defesa e dos comandantes das três Forças às declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. O argumento dos generais é que qualquer leigo poderia usar o termo genocídio de maneira imprópria, mas o tipo penal na boca de um ministro tem um sentido preciso, que não pode ser ignorado”.

Em suma, o dilema dos generais de Exército Fernando Azevedo e Edson Pujol; do almirante de Esquadra, Ilques Barbosa Júnior; e do tenente-brigadeiro do Ar, Antonio Carlos Moretti Bermudez, é o de que seus destinos profissionais, e morais, já podem estar inapelavelmente atrelados ao de Jair Bolsonaro e suas ações genocidas diante da pandemia; inimputáveis que possam ser no caso da população em geral, mas objetivas e atribuíveis no caso das populações indígenas.

*Professor Emérito
Faculdade de Comunicação
Universidade de Brasília (UnB)

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