Fome: O outro lado da pandemia

Cena que se tornou comum - Foto Orlando Brito

Em 16 de janeiro de 2018 publiquei no jornal O Estado de S. Paulo (pág. A-2) artigo com o título Geografia da Fome. Em poucos parágrafos procurei estimular discussão sobre tema que se coloca entre os principais e mais antigos problemas sociais brasileiros: a fome.

Euclides da Cunha (1869-1909) abordou o assunto no clássico Os Sertões, livro -reportagem sobre Canudos (1896-1897). Graciliano Ramos (1892-1953) escreveu sobre a fome nordestina em Vidas Secas. Devem-se, porém, a Josué de Castro, médico, escritor e político pernambucano, os melhores estudos sobre a trágica questão. Geografia da Fome, Sete Palmos de Terra e um Caixão, estão entre os mais respeitáveis trabalhos a propósito da falta de comida aos pobres. Renderam-lhe reconhecimento universal e indicação ao Prêmio Nobel, não convertida em realidade por descaso do regime militar, que o perseguiu e o obrigou a se exilar na França.

A doença do brasileiro é a fome, escreveu Josué de Castro. Doença que nos persegue desde o Brasil colônia, adquirindo dramática gravidade neste ano de pandemia.

A Guerra de Canudos – Foto Flávio de Barros

A Síntese dos Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira, publicada pelo IBGE, relativa ao ano de 2020, traz dados estarrecedores, que me permito reproduzir em parte. Diz a Síntese à fl. 64: “O público-alvo potencial do programa Bolsa Família (pessoas com rendimento abaixo de R$ 178) era de 16,2 milhões de pessoas em 2019. Se tomarmos em consideração a linha recomendada internacionalmente para o Brasil, o total de pobres mais do que triplica e supera 51 milhões de pessoas no mesmo ano. Pela linha de ½ salário-mínimo per capita, 29,2% da população brasileira deveria estar cadastrada no Cadastro do Governo Federal, em 2019. Cabe ainda ressaltar que as linhas do valor mais baixo apontavam, no mesmo ano, para um contingente entre 8,5 milhões e 13,3 milhões de pessoas em condição de extrema pobreza”.

O mesmo trabalho informa que “A distribuição da população pobre pelo território difere bastante daquela observada para a totalidade da população em 2019. Enquanto a Região Nordeste respondia por 27,2% do total populacional do País, essa região abarcava 56,8% das pessoas consideradas extremamente pobres pela linha de US$ 1,90 PPC. O Sudeste, Região brasileira mais populosa, respondia por entre 20% e 27% da população de pobres a depender da linha adotada” (fl. 65).

A pandemia do coronavírus desatualizou as informações da Síntese relativas a 2020. Com a retração das atividades econômicas, exigida pela necessidade de isolamento social, a quantidade de desempregados e de subocupados se multiplicou. Milhões que dependiam da prestação de serviços eventuais ficaram sem serviço. Em São Paulo, apontada como cidade rica, milhares de moradores de rua e de pedintes estão sem comer. Famílias não têm comida para dar aos filhos e suplicam por qualquer espécie de ajuda nas imediações de supermercados e padarias.

Franco Montoro no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo – Foto Orlando Brito

Na crise dos anos 80 o desemprego atingiu elevado número de pessoas que, em dado momento, premidas pela fome, foram às ruas para saquear o que lhes estivesse ao alcance. O governador Montoro e sua sra., d. Lucy, não permaneceram inertes. Criaram programa de alimentação, voltado à distribuição de gêneros de primeira necessidade. A tarefa foi entregue à Secretaria do Trabalho, por mim chefiada. Graças à Polícia Militar e ao pessoal do gabinete, as cestas passaram a ser organizadas e entregues. Durante meses, famílias mais necessitadas foram socorridas. Em Belo Horizonte, por ordem do então governador Tancredo Neves, foi instituído o “sopão”, distribuído pela Secretaria do Trabalho comandada pelo deputado Ronan Tito.

Alguma coisa deve ser feita. É impossível assistir impassível pessoas vasculhando cestões de lixo à procura de algo para vender por alguns trocados e comprar comida. O combate à pandemia mobiliza os recursos disponíveis e, nesse sentido, o governo do Estado e a prefeitura da Capital mostram-se incansáveis, mesmo com falta de leitos e de vacinas. É necessário, entretanto, encontrar meios e energias para socorrer quem tem fome. O momento exige solidariedade. O exemplo deixado pela saudosa dama D. Lucy Montoro não deve ser esquecido.

Combater a fome é tão prioritário quanto a luta contra a pandemia.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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