No dia 4 de maio último, escrevi neste Os Divergentes que era preciso falar de Hamilton Mourão. Um tema indigesto, sabia, mas que me parecia inevitável. Antes, porém, pretensão minha, que o tema se espalhasse, e dificilmente, se espalharia, Mourão falou. Ou, melhor dizendo, voltou a falar, pois já se sabe que, quando quer, e acha oportuno, o vice-presidente de Jair Bolsonaro é loquaz e capaz de enfeitiçar o empresariado, de bancos de investimento a setores da da mídia corporativa.
Voltou com pose de estadista, de liberal iluminista, talvez até ao gosto do ilustrado ministro Luís Roberto Barroso, citando John Jay e, por consequência, James Madison e Alexander Hamilton, organizadores do clássico O Federalista (The Federalist Papers), que assentou muitas das bases normativas sobre as quais se ergueriam os Estados Unidos da América.
Antes, porém, de se chegar a este trecho do artigo de Mourão, volte-se ao seu parágrafo inicial, mais precisamente à oração inicial: “A esta altura está claro que a pandemia de Covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança”.
O tom de ameaça é evidente, não fosse por outra razão, por se tratar de um estrelado general, e de cavalaria, uma Arma conhecida por rompantes que muitas vezes fazem esmaecer as diferenças entre cavaleiro e cavalgadura. E o general conclui seu raciocínio inicial, na busca de culpados pela gestão da crise da pandemia, como se nada fosse responsabilidade dele e do governo que vice-preside:
“Para esse mal nenhum país do mundo tem solução imediata, cada qual procura enfrentá-lo de acordo com a sua realidade. Mas nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos e pode ser resumido em quatro pontos”.
Em seguida, Mourão enumera os insensatos que pretende alvejar, começando por aqueles que costumavam, e ainda costumam, elogiar suas tiradas e gracinhas: a imprensa corporativa, culpando-a, não sem uma certa razão, baita ironia, “pela polarização que tomou conta de nossa sociedade”. Não satisfeito, oferece sua receita para a correção dos desvios cometidos, por exemplo, pelo Grupo Globo e Folha de S.Paulo: “A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever seus procedimentos nesta calamidade que vivemos.
Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação. Sem isso teremos descrédito e reação, deteriorando-se o ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia”.
Traduzindo: para cada cientista da Fundação Oswaldo Cruz, USP, UnB, UFRJ, etc, ouvido, mesmo espaço e tempos para Osmar Terra.
Não contente, no mesmo parágrafo, como quem não quer nada, Mourão atira contra o STF e Alexandre de Moraes, ao queixar-se de que hoje no Brasil “se radicaliza por tudo, a começar pela opinião, que no Brasil corre o risco de ser judicializada, sempre pelo mesmo viés”, num canhestro esforço de justificar as milícias digitais comandadas por Carlos Bolsonaro.
Chegamos, então, a O Federalista, citado por Mourão de uma maneira um tanto wikipédica – tentação a que todos estamos eventualmente sujeitos – para ilustrar o segundo alvo de Mourão: os governadores. Aqui, o general me oferece uma oportunidade de rever coisas que estudei no passado, relativas ao embate confederação versus federação, dos originais Artigos da Confederação à Constituição dos Estados Unidos, e sua Carta de Direitos, e das razões que levaram ao acordo entre os novos estados, do Sul e do Norte, que transformaram a Confederação original em uma república federativa.
Foram pelo menos duas as razões principais que levaram à revisão dos Artigos da Confederação de 1781, que tinham sido originalmente acordados pela 13 antigas colônias britânicas: uma Confederação não poderia constituir forças armadas unificadas, o que a deixaria vulnerável a uma tentativa britânica de reintegrá-las, pela força, ao seu império; uma Confederação criaria barreiras alfandegárias indesejáveis entre os estados, dificultando a circulação de produtos, o que levaria ao seu encarecimento, e mesmo de pessoas.
Foram oito anos de embates, teóricos – daí O Federalista -, econômicos e políticos, ate a ratificação, em 1789, da Constituição republicana e federativa até hoje vigente. Dois grandes acordos foram fundamentais para que se chegasse a esse desfecho. O primeiro, certamente do conhecimento de Hamilton Mourão, mas não de conhecimento muito geral, foi o Acordo dos 3/5, mediante o qual, para efeitos de se determinar a população total de cada estado com fins de representação legislativa e de cobrança de tributos federais, cada escravo, propriedade que era, valeria por ‘3/5 de uma pessoa’ (sic). A ideia era, e foi, ‘reequilibrar’ as populações do Sul escravagista, e do Norte ‘liberal’.
Já o segundo grande acordo não parece ser de conhecimento de Mourão: o acordo que visou assegurar que um poder federativo centralizado não se sobrepusesse aos direitos individuais, razão pela qual, em 1791, ratificou-se uma Carta de Direitos, com uma sequência de dez emendas, a primeira das quais estabeleceu que o Congresso dos Estados Unidos não legislará sobre o estabelecimento de religião, nem proibirá o seu livre exercício; como não fará leis que restrinjam a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem petições ao governo para reparação de agravos.
Ou seja, ao mesmo tempo em que desanca os governadores por desejarem atuar como verdadeiros entes confederados, invocando os chamados pais fundadores da república estadunidense, Mourão nega os mesmos pais fundadores ao sugerir que a imprensa dê ao governo o mesmo espaço e tempo na cobertura da pandemia que aos seus críticos, mesmo que este espaço e tempo sejam dedicados, tanto às estultices de um Osmar Terra, quando aos atos literalmente criminosos, por palavras e ações, do próprio Jair Bolsonaro.
Em seu ‘terceiro ponto’, Hamilton Mourão dirige seus ataques aos Poderes Legislativo e Judiciário, a quem acusa de usurpar competências próprias do Executivo, recorrendo a um autor que, confesso, desconhecia:
“Na obra brasileira que pode ser considerada equivalente ao Federalista, Amaro Cavalcanti (Regime Federativo e a República Brasileira, 1899), que foi ministro de Interior e ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou, apenas dez anos depois da Proclamação da República, que “muitos Estados da Federação, ou não compreenderam bem o seu papel neste regime político, ou, então, têm procedido sem bastante boa fé”, algo que vem custando caro ao País”.
Noves fora o fato de que Cavalcanti referia-se a uma federação que mal completara dez anos, vinda de um império fortemente centralizado, dei-me ao trabalho de procurar saber sobre o referido autor, e, fora uma breve wiki-biografia, encontrei, por ironia, nos arquivos da biblioteca do STF um recorte do Correio Braziliense, de 01/03/1999, com um artigo de Almir Pazzianotto do qual extraí a seguinte citação, referindo-se ao que mais teria notabilizado o ilustre maranhense; seu pensamento econômico:
“O pensamento de Amaro Cavalcanti seria atualizado mais de século e meio depois, nas lições de outro ilustre nordestino, o professor Celso Furtado, para quem é falsa a alternativa entre crescimento comprometido pela espiral inflacionária ou estabilidade combinada com estagnação”. Em outras palavras, o mais perfeito tradutor das ideias originais de Amaro Cavalcanti, segundo Pazzianotto, poderia, não tivesse se exilado, ter sido preso, torturado, e morto, pelo regime idolatrado por Hamilton Mourão.
Sobre o quarto ponto, a imagem do Brasil no exterior, em que o general ataca ex-chanceleres como Celso Lafer, Celso Amorim, Rubens Ricúpero e Aloysio Nunes Ferreira, bastam duas palavras paras rebater Mourão: Ernesto Araújo.
Porque o que resta dizer é de uma gravidade sem tamanho para a sociedade brasileira atingida, como todo o resto do planeta, pela crueldade da covid-19, mas com a particularidade de que aqui a crueldade foi potencializada pela maldade atávica de Jair Bolsonaro, de quem Hamilton Mourão é vice-presidente, e de quem agora finge ser o mais fiel ordenança, mas mirando nos mercados, políticos e financeiros, que hoje passaram o dia consultando seus oráculos, de aqui e alhures, à procura da chave para decifrar a esfinge: afinal, o que pretende Hamilton Mourão?
Por isso, era e é preciso falar de Hamilton Mourão.
Ele, mais do que ninguém, sabe que do seu lugar, neste momento, ninguém o tira. De um lado, professa a mais suprema lealdade; do outro, pisca, como quem diz, ‘e se?’.
Quanto a nós, os que não sabemos para onde correr, não há mesmo para onde correr. Ou continuamos com a cruz do cemitérios ou teremos que conviver, agora sem um trânsfuga intermediário, com a espada da caserna.
*Professor Emérito da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB)