Não, caro leitor, cara leitora, não se trata da volta da amada arrependida, como na belíssima canção de Francis Hime e Chico Buarque, mas do retorno da vontade das elites conservadoras de − alternativamente ao golpismo militar − emplacar um sistema de governo que mitigue os poderes de um presidente da República, que, a um só tempo, no presidencialismo, exerce as funções de chefe de Estado e chefe de governo. Curiosamente, irmanam-se na defesa dessa engenhoca política os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, ambos do STF.
A motivação dessa experimentação não é barrar as sandices do bolsonarismo. O atual presidente da República dispensa circunlóquios institucionais para fazer valer seus métodos e propósitos autocráticos. Em outras palavras, não dispensaria a violência, rumo à tirania. As razões de fundo, talvez, possam ser encontradas no propósito de arrefecer a autoridade do que possa ser uma contraposição efetiva ao bolsonarismo. Por ora, são razões inconfessáveis, que parecem residir no lado obscuro da Lua.
A entrada de Arthur Lira no círculo de iniciados sugere que as articulações em torno do semipresidencialismo podem, doravante, ser aceleradas. A conferir. De todo modo, nossa história republicana está a nos recordar que, ao largo da vontade popular, um dito sistema parlamentarista de governo, levou, entre nós, apenas oito dias para ser costurado, a fim de se permitir, com o beneplácito das Forças Armadas, a posse de um presidente da República desidratado. Pouco mais de um ano depois, quando o povo pôde se manifestar, derrotou aquela manobra dos de cima de forma acachapante. O que se passou em seguida, sabemos de cor.
Alegam os defensores dessa esdrúxula ideia, que, diga-se, desafia a soberana decisão plebiscitária de 21 de abril de 1993, que o semipresidencialismo fortaleceria partidos políticos programáticos; daria estabilidade aos governos, ou seja, conferiria condições de governança ao Poder Executivo; e impediria arroubos autoritários de um presidente da República.
Não é o que se pode ver, no momento, na França, berço da arquitetura semipresidencialista, desde a Segunda República, de 1848, ou, se quisermos, modernamente, de sua restauração em 1962, já na Quinta República. Ali, à exceção do Reagrupamento Nacional, de extrema-direita, os demais partidos são cada vez mais voláteis; e militares até ameaçam tornarem-se protagonistas na ribalta política, indo de encontro ao que preconizava Georges Clemenceau. Portugal, que serviu de fonte, na qual os constituintes brasileiros muito bebericaram, copiou o semipresidencialismo francês. Mas Lisboa vivencia hoje um sistema de governo capenga, onde o gabinete socialista mal se equilibra, contando apenas com a tolerância de forças de esquerda, e o primeiro-ministro, de centro-esquerda, ainda, vive às turras com o presidente da República, de direita, que se deleita com sua prerrogativa presidencial de vetar atos legislativos.
Tudo bem. Seria, então, a experiência trágica da República de Weimar o modelo para um CtrlC+ CtrlV? Seria, por acaso, a Polônia, em seu pendor criptofascista (ou seria um cristofascista?) o bom exemplo de semipresidencialismo a ser seguido? A Rússia? Diria o saudoso Bussunda: “Fala sério…”. Ou o Peru, que nem nos oferece tempo suficiente para memorizar os nomes de seus presidentes? É bom lembrar, quem sabe, que o continente no qual mais viceja o semipresidencialismo é a África, mas, convenhamos, é difícil de ali encontrar paradigma de semipresidencialismo compatível com princípios democráticos.
Como bem disse o Ministro Joaquim Barbosa, “semipresidencialismo é um salto no escuro”. Sem embargo das questões políticas de fundo com o intento dessa manobra, haveria muitas questões a debater. Vamos lá.
Semipresidencialismo: solução ou confusão?
Quanto ao Parlamento, a quem competiria determinar a ocasião de sua eleição e sua dissolução? Ao chefe de Estado (presidente) ou ao chefe de governo (primeiro-ministro) ? Qual dos dois poderia convocar, interromper ou adiar os trabalhos legislativos? A participação do chefe de Estado no processo legislativo se limitaria à promulgação das leis, isto é, declaração de regularidade da tramitação, ou se daria por sanção, na qual há manifestação de concordância política com a proposição? O chefe de Estado teria o direito de veto suspensivo? Poderia submeter as leis a referendo popular? Poderia vetar proposição por inconstitucionalidade? Em caso de emergência legislativa, poderia editar decretos-lei, em substituição ao Parlamento?
Quanto à formação e funcionamento do gabinete, limitar-se-ia o chefe de Estado a acatar a escolha de arranjos parlamentares ou a confiar o poder aos chefes do partido político vitorioso nas eleições gerais? A permanência de ministros dependeria apenas do voto de confiança da assembleia parlamentar ou haveria um poder moderador? O chefe de Estado ficaria alheio aos assuntos de governo, tendo o direito apenas de ser informado e aconselhar? Quem presidiria as reuniões do conselho de ministros (gabinete)? Quem nomearia os altos funcionários das relações internacionais? E a Defesa, seria uma das pastas no gabinete, ou as Forças Armadas estariam diretamente atreladas ao presidente da República?
E mais: o chefe de Estado possuiria atribuições relativas às funções jurisdicionais (indicações de magistrados de tribunais superiores) e à execução das penas? Poderia exercer a prerrogativa de conceder clemência ou graça, perdoando ou indultando penas? Poderia assim agir sem referenda do primeiro-ministro ou do ministro da Justiça? Presidiria o órgão superior de disciplina da magistratura? Interviria na organização do Ministério Público?
Como se percebe, são questões que não podem ser resolvidas de bate-pronto, da noite para o dia. E sequer tocamos num tema correlato e inafastável: o sistema eleitoral.
Há soluções possíveis para aprimorar o presidencialismo, sem que venha à baila a obrigação de mudar o sistema de governo. Cito algumas: mudar o calendário eleitoral, de sorte que haja, num ano, eleições federais (presidência da República, senadores e deputados federais) e, depois eleições regionais (governadores, deputados estaduais e distritais, prefeitos e vereadores); vinculação do voto entre presidência da República e candidaturas à Câmara dos Deputados de legendas que componham coligações (preferencialmente, federações) partidárias de apoio a uma postulação presidencial. O voto proporcional de lista aberta poderia ser ainda substituído por um modelo proporcional de lista fechada ou mista, ou proporcional personalizado (voto distrital misto alemão). Seriam expedientes que aumentariam o coeficiente de governança, sem prejuízo da existência de oposição consistente e, sem dúvida, fortaleceriam os partidos políticos.
São preferíveis soluções razoáveis a experimentações que mal disfarçam a sanha da exclusão. Mas a vontade das elites é implacável, tudo faz para dominar a cena: “E aí ela cisma de voltar, sorri quase pra te convidar, quase pra te convencer, quase pra te complicar, quase pra te confundir, mesmo pra te enlouquecer”.
* Advogado, é mestre em Direito Constitucional pela UFMG