Diferença sutil: milícia é um braço da PM-RJ; tráfico é crime organizado

Para o autor, são grandes as diferenças entre milicianos e traficantes. Neste contexto, ele aborda o envolvimento do clã dos Bolsonaros

Legal, mas imoral. São estes os casos das rachadinhas do senador Flávio Bolsonaro e dos funcionários fantasmas do vereador Carlos Bolsonaro. Relacionamento e apoio eleitoral de milícias são efeitos colaterais. Problema do presidente Jair Bolsonaro: perigo de ser enquadrado na configuração de “domínio do fato”, o veneno aplicado pelo então ministro do STF, Joaquim Barbosa, para enquadrar os chefões petistas num outro crime, a formação de quadrilha.

Ao contrário do que se fala, rachadinha não se trata de dinheiro público nem de crime capitulado no Código Penal. As pessoas dão dinheiro aos parlamentares porque querem; no caso dos funcionários fantasmas, estes empregados dos legislativos não são clandestinos nos cofres públicos, pois recebem subsídios legais, nomeados segundo a legislação vigente. Tudo de acordo com as leis dos serviços públicos.

Nenhum dos milhares de “chantageados” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro denunciou ou se queixou de qualquer tipo de constrangimento para depositar sua parte na caixinha. Nem o chefe reclamou das ausências ao trabalho dos tais “fantasmas”. Seriam casos para as varas cíveis ou Justiça do Trabalho. Cada qual faz o que quer com seu dinheiro, diz a lei. Nos tribunais, esses processos criminais vão morrer na praia, no que toca a dinheiro público.

Sucessora bastarda

Assim, também são incompletas as acusações de promiscuidade entre os filhos do presidente Jair Bolsonaro com milicianos, no Rio de Janeiro. As milícias não se configurariam como organizações criminosas convencionais, pois elas funcionam, efetivamente, como órgãos auxiliares do estado. A “milícia” do Rio é uma sucessora bastarda dos antigos corpos provisórios, volantes nordestinas e outras organizações fardadas paralelas controladas pelos chefões políticos do passado, adstritas às forças públicas, antecessoras das polícias militares dos estados atualmente. Mas que desapareceram.

O ex-capitão da PM do Rio, Adriano da Nóbrega, morto no interior da Bahia

Para o brasileiro comum, que desconhece as singularidades do Rio de Janeiro, Milícia e Tráfico seriam duas faces da mesma moeda. Negativo. O tráfico é financiado pelo “crime”, organizado e comandado pelos “fora da lei”, os populares bandidos, que abastecem o mercado de itens proibidos, como drogas, jogos (bicho, principalmente), prostituição, contrabando etc.

A milícia é financiada pelo comércio e outras atividades legais, inscritas na Junta Comercial. Quando algum miliciano extrapola, é punido pelo próprio braço legal da organização a que está informalmente vinculado, ou seja, o respectivo batalhão da PM com jurisdição naquela área. Foi o caso do descontrole inaceitável, por essas regras, das construções clandestinas que desabaram. Desvio de finalidade que comprometeu imperdoavelmente as milícias, segundo seus mentores. Os culpados foram devida e exemplarmente punidos. Vide o caso do capitão Adriano Nóbrega.

A polícia fardada está submetida às leis da civilização contemporâneas, que contemplam direitos individuais. Para manter a lei e a ordem e, por conseguinte, o poder de fato nas periferias do Rio de Janeiro, existem esses segmentos que operam segundo outras “legislações” consuetudinárias, há muito abolidas dos códigos, mas vigentes nos subúrbios e favelas distantes do poder convencional dos governos.

Nesse setor, bandido bom é bandido morto. Roubo de comerciantes é crime de punição sumária. Já a criminalidade convencional, como homicídios, roubos e furtos de pessoas físicas ficam por conta do policiamento normal. Quem paga este serviço extraordinário é o comércio (e outras atividades econômicas, como oficinas, fabriquetas etc.), geralmente com recursos sonegados da tributação. Entretanto, estas taxas fazem parte da planilha de custos e não deixa de ser contribuição do tipo imposto adicional para os negócios fora dos limites da Zona Sul.

Antiga “Mineira”

Esta diferença entre crimes cometidos por policiais renegados ou de bandidos quadrilheiros provoca uma grande confusão na cabeça das pessoas que não conhecem o Rio de Janeiro, pois isto vem de uma organização peculiar àquele Estado. Não há milícias agregadas às polícias militares em Brasília, São Paulo, nem em Minas, tampouco no Rio Grande do Sul ou outros estados.

Nestes encontram-se policiais militares larápios, que também matam, roubam e fazem chantagens ilegais e outras maldades, mas não têm a consistência “institucional” própria da antiga capital federal e que vêm de muito longe. Às vezes confundem as ilegalidades do sindicalismo policial contemporâneo com aquela organização clandestina. Mas não tem o mesmo sentido nem a mesma missão da “milícia” carioca.

A chamada “milícia” do Rio nada mais é do que a antiga “Polícia Mineira” (não existem policiais civis nas milícias), formada por soldados, cabos, graduados e oficiais de baixa patente (em geral feitos por antiguidade; não vindos de academias). Ou seja: a milícia é um braço do baixo clero da polícia militar legal, com objetivo estratégico de impor os rigores da lei de um sistema de poder e de segurança que vigorou no passado, banido, mas não totalmente extinto, pelas leis da civilização que o Brasil foi obrigado a adotar, para permanecer na comunidade internacional.

Portanto, é natural que políticos que disputam eleições, no Rio de Janeiro, em algum momento tenham de transitar nessas sombras. Há políticos ditos “ideológicos”, que têm suas bases eleitorais fora dessa área promíscua.

Não são poucos. Aí estão os esquerdistas apoiados por militâncias educadas, sindicalizadas ou direitistas vindos de seitas religiosas, que obedecem a lideranças e comandos. Outros têm mensagem própria, como é o caso do presidente Jair Bolsonaro que, nos seus tempos de deputado, tinha o apoio das famílias dos graduados e oficiais de baixa patente, um contingente muito numeroso no Rio de Janeiro.

Negócio de família

O presidente Bolsonaro e os filhos Eduardo, Flávio e Carlos

Por ter esse eleitorado fiel, na ativa e na reserva do Exército, devido à sua origem de defensor das reivindicações próprias do corporativismo verde-oliva, o então deputado Bolsonaro não dependia de acordos com esses grupos para transitar pelo território da Zona Norte. Tinha publico cativo. Já seus filhos não, devem se submeter a esses intermediários, pois, para ir às favelas, o candidato precisa da licença do tráfico ou da proteção efetiva das milícias. Sendo assim, o presidente não estaria contaminado como seus “garotos”, o vereador Carluxo e o senador 01, atualmente enrolados com o Judiciário nesses costumes generalizados, mas ilegais, da política estadual no Rio de Janeiro.

Entretanto, como a política é um “negócio” de família no clã dos Bolsonaros, não é razoável dizer que o presidente da República ignora as bases suspeitas de seus filhos parlamentares. Por esse raciocínio, seria aplicável ao cabeça da família o mesmo modelo do “domínio do fato”, que penalizou outros chefes políticos, como o ex-presidente Lula da Silva e alguns governadores e manda-chuvas alcançados pela Lava Jato e pelo Mensalão.

Como destilavam os líderes da direita quando o PT teve de enfrentar denúncias de corrupção: “Beber do próprio veneno”. Como se diz no Rio Grande do Sul: “Nada mais parecido com um chimango do que um maragato no governo”.

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