Democracia ameaçada – os crimes de Bolsonaro e a cumplicidade de Rodrigo Maia

Bolsonaro e Maia

Enquanto imprensa, redes sociais e o público em geral – aquele com acesso amplo a meios de informação e comunicação – noticiam, digerem, se espantam, sofrem, vibram com os índices de popularidade atingidos por Jair Bolsonaro na mais recente pesquisa de opinião do Data Folha, cloacas bolsonaristas continuam a vomitar sordidez, como no triste episódio protagonizado por sua porta-voz mais emblemática.

Não gastarei mais do que essas linhas com essa lamentável figura, que sequer merece ser nominada, e muito menos com o sofrimento que ela e outros sociopatas – e é disso que se trata; da mais absoluta falta de empatia – infligiram a uma criança de 10 anos. Porque o verdadeiro protagonista por trás desse lamentável episódio é Jair Bolsonaro. E é dele, com ou sem índices crescentes de popularidade, que se precisa jamais deixar de falar.

Bolsonaro, ao contrário dos desejos mais ilusórios dos chamados mercados e seus prepostos na política e na mídia, jamais se permitirá ser ‘normalizado’. Ele continuará a fazer a todos eles de idiotas, enquanto arrasta o país para uma bancarrota moral sem paralelo em nossa história. Os tempos horríveis que estamos vivendo, na política, na cultura, e na saúde, tem, acredito, essa dimensão histórica.

E talvez resida na crise sanitária do coronavírus a razão maior da paralisia política que alimenta a sordidez bolsonarista.

Cruzes em memória dos mais 50 mil mortos pela pandemia da Covid-19 no Brasil – Fotos Orlando Brito

A dor e o medo provocados pela pandemia; mortes diárias, sepultamentos solitários, hospitalizações, a angústia das esperas, as informações médicas que nunca chegam, o emprego perdido, o vai e vem das decisões das autoridades; um arrolar de incertezas que parece não ter fim.

Paralisia que se tornou ainda mais evidente desde que Rodrigo Maia afirmou, no dia 3 de agosto, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, sua certeza de que Jair Bolsonaro não cometeu até agora crime algum de responsabilidade, que justifique a abertura de um processo de impeachment. Ao que consta já são mais de 50 pedidos de impeachment sobre a mesa do presidente da Câmara.

E a julgar pela falta de reação, e aqui me refiro especificamente aos proponentes dos referidos pedidos, Maia possivelmente teve razão quando emitiu a sua desassombrada opinião sobre a inocência de Bolsonaro. Os pedidos parecem estar lá só para constar. Porque o mínimo que se poderia esperar diante da gravidade do juízo antecipado de Maia – que até poderá lhe custar a acusação de crime de prevaricação – seria uma reação concertada de pelo menos parte dos proponentes do impeachment do presidente da República.

Mas, se a pandemia não for mesmo a razão de tamanha paralisia, o que seria até compreensível, essa razão somente poderá ser encontrada no cinismo generalizado dos profissionais da política, à esquerda e à direita, a quem interessaria mais acompanhar índices de pesquisas eleitorais e de popularidade do que as estatísticas diárias de mortos e contaminados pela covid-19. Estas, como os crimes de Bolsonaro, já estariam, como se diz no mercado financeiro, devidamente ‘precificadas’. E vida que segue, de olho nas eleições municipais e nacionais. Como se calendários eleitorais confirmados valessem também como confirmação da democracia. Porque eleições nunca deixaram de acontecer no Brasil republicano, mesmo durante as ditaduras.

Recorro a três referências bibliográficas para argumentar que o voto, quem diria, pode ser tornar hoje em dia uma ameaça real à democracia: Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Como as Democracia Morrem, Rio de Janeiro, Zahar, 2019; Giuliano Da Empole, Os Engenheiros do Caos – como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições, São Paulo, Vestígio, 2019; e Anne Applebaum, Twilight of Democracy – the seductive lure of authoritarianism, New York, Doubleday, 2020.

Bepe Grillo nunca pensara em entrar na política, satisfeito com sua bem sucedida carreira de stand up comedy, até que, em 2005, seu destino se cruzou com o de Gianroberto Casaleggio, um empresário de marketing digital, com uma visão: a de que a política era pouco mais que um bem de consumo, que deveria estar disponível ao que ele chamava, sem qualquer pudor, de cidadão-consumido. Foi assim que, de um blog, bebbegrillo.it, nasceu um fenômeno político, o Movimento 5 Estrelas, ao qual pertence Giuseppe Conte, atual primeiro ministro italiano.

Alvo de criticas, Donald Trump, na Casa Branca

Donald Trump nunca pensou de verdade em ser presidente dos Estados Unidos. Sua postulação em 2016 não deveria ter passado de uma jogada publicitária, para alavancar sua marca, que há muito era o que lhe restava, depois de fracassar em negócios imobiliários, cassino, hotelaria e até uma ‘universidade’. Do restante da história sabe-se muito hoje, das conexões russas a Steve Bannon, Facebook e Cambridge Analytica. Quando ao processo de impeachment pelo qual passou, o mais relevante não foi o resultado, totalmente previsível. Mas a decisão da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, de levar adiante o processo, sob oposição forte do seu próprio partido Democrata, por entender que se tratava de um imperativo democrático. Hoje, depois de naufragar na gestão da pandemia, Trump corre risco real de perder a eleição para Joe Biden, o que tenta evitar de duas maneiras: sabotando o sistema eleitoral e afirmando que a única maneira de perder a eleição será por fraude, requentando argumento já usado em 2016.

Das três obras acima, a mais recente e a que, do meu ponto de vista, tem particular interesse para nós, no Brasil, é a de Anne Applebaum, que trata da falência de dois projetos democráticos no Leste Europeu: o da Polônia, onde ela vive – é casada com um ex-ministro da Justiça do último governo democrático-liberal polonês; e o da Hungria, de Viktor Orban. Este é o que mais entusiasma aquela parcela do bolsonarismo que tem em Eduardo Bolsonaro a principal referência. Orban foi o único chefe de governo europeu a comparecer à posse de Jair Bolsonaro, e já foi visitado em Budapest, em abril do ano passado, por Eduardo que, na mesma viagem, esteve também com o italiano Matteo Salvini, então um poderoso ministro do Interior e vice-primeiro ministro da Itália. O parlamentar brasileiro apresenta-se nesses encontros como o representante latino-americano do The Movement, movimento político de ultradireita criado por Steve Bannon, o ex-coordenador de campanha de Donald Trump em 2016, de quem foi, por algum tempo, já no governo, o estrategista-chefe.

Ministro do STF, Celso de Mello – Foto Orlando Brito

Lutar, pois, pelo impedimento de Jair Bolsonaro, seja por via do impeachment, ou do inquérito ora em curso, pedido pela Procuradoria Geral da República, relatado pelo ministro Celso de Mello, do STF, é um imperativo para quem luta pela democracia no Brasil. O projeto de poder dos Bolsonaros não é, se é que o foi um dia, um projeto de poder de curto prazo, sujeito a derrotas eleitorais. É um projeto que não admite essa possibilidade, por ser, na essência, um projeto autoritário. Um projeto que, como todos estamos testemunhando, alimentou a pandemia para se alimentar dela, com a mais absoluta falta de escrúpulos políticos e compaixão humanitária.

A fala irresponsável de Rodrigo Maia no Roda Viva nasceu da ilusão – e admito a minha generosidade analítica nesse raciocínio – que ele compartilha com seus pares de direita no Congresso, e fora dele; com banqueiros e empresários dos mais diversos setores, da indústria, comércio e serviços; de que o ‘problema Bolsonaro’ é um problema para ser tratado em 2022. Ilusão compartilhada pela esquerda em geral, de Lula a Ciro Gomes; de Flávio Dino e Guilherme Boulos etc., a julgar pela passividade de todos diante do oportunismo do presidente da Câmara.

Porque para Rodrigo Maia e os interesses acima mencionados que ele representa, e que tem no patético e ressentido Paulo Guedes o fiador no governo, o que importa, no limite, não é a democracia, mas a defesa de velhos e novos dogmas econômicos, como este hoje quase místico ‘teto de gastos’.

Viktor Orban, da Hungria

O que nenhum desses personagens quer ver, por ilusão, ou mais certamente por cúmplice oportunismo, é que – e aqui passo longe da pesquisa Data Folha que abalou o país nos últimos dias, como uma explosão de nitrato de amônio – Bolsonaro poderá, sim, ser reeleito em 2022, e reeleito com ampla maioria no Congresso, o que o permitirá deitar e rolar sobre os sonhos de 1988. E assim, ao lado do parceiro Viktor Orban, figurar com destaque em uma nova edição, com tradução para o português, do acima mencionado livro de Anne Applebaum, O Crepúsculo da Democracia – a atração fatal pelo autoritarismo.

*Jornalista. Professor Emérito da Faculdade de Comunicação da UnB

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