Constituição: realidade e fantasia

Para o autor, a Constituição deve refletir a realidade e não garantir mais do que a economia, os impostos e o trabalho conseguem proporcionar. A letal combinação entre crise econômica, crise política e crise social poderá deflagrar crise institucional cuja solução virá, como em 1964, pela violência das armas.

Constituição do Brasil, promulgada em 1988 e alterada 128 vezes - Arte: Lucas Lambertucci / Alep

É insensato ignorar a crise que assola o País e a responsabilidade que recai sobre a Constituição.

Exceção feita a certo número de integrantes da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), que negam a realidade, é opinião dominante estar a 8ª Constituição com o prazo de validade vencido. Não observo, porém, articulações para derrubá-la. Diante da apatia da classe política, a morte virá por falência múltipla dos órgãos, como já ocorreu no passado.

Afinal, o que é a Lei Fundamental? Os especialistas na matéria não costumam se pôr de acordo acerca da melhor definição. O jurista Pinto Ferreira, após citar uma dezena, a define como “conjunto de normas convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956). Poderia ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do Estado”.

A Constituição de 1824 vigorou no Brasil durante todo o período imperial até a Proclamação da República, em 1889

Convergem os bons constitucionalistas no sentido de que compete à constituição determinar os fundamentais do Estado Democrático de Direito. Tudo quanto não for fundamental ou essencial, deveria ficar por conta do legislador ordinário. Assim o dizia o artigo 178 da Carta Imperial de 1824, que vigorou 65 anos e foi emendada uma única vez: “E só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não for constitucional, pode ser alterado sem as formalidades requeridas, pelas Legislaturas ordinárias”.

Para não descambar ao terreno da fantasia, a Lei Fundamental deve refletir a realidade e não garantir mais do que a economia, os impostos, o trabalho produtivo, conseguem proporcionar. Como diria Oliveira Vianna, o traço dominante das últimas constituintes consiste na fatídica crença no poder mágico das palavras. Da Constituição de 1988 recolho, como pérfidos exemplos de ilusionismo, o elenco dos direitos sociais, a definição de salário-mínimo, a proteção contra a automação, as garantias relativas à família, à saúde, à educação, à previdência social, à segurança, ao emprego, ao trabalho (Título VIII – Da Ordem Social).

À sombra de um arvoredo, no semáforo ao lado do Ministério da Economia e perto do Congresso, Jasmim, Antônio e Ângela – Fotos Orlando Brito

Os direitos sociais relacionados em 34 incisos do artigo 7º oferecem frágil cobertura a minoritário mercado formal. Para os informais, desempregados, subocupados ou desalentados, prevalece a irrevogável lei da oferta e da procura. São 10 milhões de desempregados, 20 milhões sem carteira profissional assinada, 22 milhões de autônomos, 33 milhões passando fome, 50 milhões sem a garantia de três refeições diárias.

O momento de assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América, por Howard Chandler Christy

Direitos fundamentais e inalienáveis são a igualdade de todos perante a lei, a liberdade de imprensa e de opinião, a dignidade, a cidadania, a pluralidade política, o acesso ao trabalho e à livre iniciativa. Não basta, para usufruí-los, que se encontrem escritos e encadernados. A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 17/9/1789 por 55 delegados representantes de 12 estados, possui 6 artigos, emendados 27 vezes. Não faz referência a direitos sociais, que se concretizam quando a economia é rica e funciona bem.

Para ser respeitada, admirada e defendida, a Constituição precisa ser conhecida e estar vinculada ao povo. Comentários eruditos, escritos por acadêmicos e professores, colocam-se fora do alcance do grosso da população. São escritos para vender livros que discorrem sobre o mundo irreal. O idealismo da Constituição, livro de Oliveira Vianna, talvez o único que se ocupou das razões do fracasso da Constituição de 1934, está fora de circulação. Parafraseando o autor, a Constituição de 1988 falhou por instituir garantias difusas entre a utopia e a realidade.

Ulysses Guimarães promulgando a Constituição Federal de 1988 – Foto Arquivo Agência Brasil

Fonte do direito ordinário é a vontade do Estado traduzida pelo Poder Legislativo. Fonte do direito constitucional é a determinação do povo, concretizada por representantes eleitos em Assembleia Nacional Constituinte.

Acredito que estamos necessitados da 9ª Constituição. Se não encontrarmos a fórmula consensual para redigi-la e promulgá-la, sem os grosseiros exageros da atual Carta de Direitos Fundamentais, a letal combinação entre crise econômica, crise política e crise social poderá deflagrar crise institucional cuja solução virá, como em 1964, pela violência das armas.

– Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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