Cem Bolsonaros mais cem Lulas nada valem diante de Elza Soares

A repercussão de sua perda foi extraordinária, até surpreendente em muitos aspectos. Os meios de comunicação, os companheiros dos espetáculos musicais, a população em geral sentiu a joia de figura humana que acabava de nos deixar. E fez imediata comparação com a situação do país onde vivem. Fome, pobreza, negacionismo, insegurança.

Uma mulher negra extraordinária, 91 anos, sofrida, amada, vitoriosa em tudo o que fez na vida, ao morrer deu um vigoroso solavanco nesse Brasilzinho modorrento que estamos vivendo, onde um presidente desconjuntado faz de tudo para piorar ainda mais. Está conseguindo, mas não vai conseguir. Um dia esse Brasil mesquinho com os pobres, insensível com os miseráveis, permissivo com a corrupção e burro no gerenciamento público vai acordar de vez.

Elza Soares com seus exemplos, força, capacidade de superar adversidades, será homenageada e lembrada, para sempre, pelos brasileiros de bom caráter. Ao partir, frase sua pronunciada há décadas foi lembrada nas transmissões televisivas sobre sua morte. Ainda jovem, disputava  programas de calouros no rádio, onde poderia encontrar trabalho como cantora. Viria a ser das melhores cantoras do Brasil. Para a BBC de Londres, a melhor do milênio.

Em sua primeira apresentação no programa de calouros, o apresentador Ari Barroso, ao vê-la esquálida mas com  potencial de voz e animação, fez-lhe a pergunta: De que planeta você veio, minha filha? “Eu nasci aqui no planeta fome”, poetizou a jovem. Barroso depois viria a compor a  mais bela música sobre o Brasil aquarela. Elsa Soares se referia ao Brasil da fome, da ignorância, da roubalheira, do banditismo, da politicagem, da doença e mais o que houver de ruim, e que aqui sempre continua.

A recordação dessa frase despertou os brasileiros para uma realidade esquecida, ainda vigente. O Brasil continuou parado, sem inteligência para desenvolver-se. E a bandidagem, política e econômica crescendo, além de ameaças neofascistas. Elza Sores queria cantar até a hora de sua morte, e acabou conseguindo. A cantora tinha programação acertada até as próximas semanas. Aos 91 anos.

O destino uniu para o amor, a felicidade e também o sofrimento, duas figuras realmente  extraordinárias: Elza Soares e Garrincha, um dos maiores jogadores de futebol do milênio, como poderia dizer a BBC. Os dois tiveram vidas complicadas. Conviveram por 18 anos, e tiveram um filho que o mau destino levou cedo. Mané nos dribles, Elza na música, no samba, nas preocupações sociais. Juntos ou separados ambos deram enormes alegrias ao povo brasileiro. E deixaram saudades e bons exemplos.

Para quem casou aos13 anos e pouco depois foi mãe, como a brilhante Elza Soares, é possível imaginar os dramas e dores passados por essa mulher baixinha que seus irmãos brasileiros não poderão jamais esquecer. Sempre alegre cantando, dançando, viajando, cuidando do Garrinha e de seus filhos, Uma fantástica brasileira de quem nos devemos orgulhar e sempre recordar.

Elza combateu o racismo com determinação, jamais aceitou imposições devido à cor da pele, e foi a primeira cantora a  se apresentar em boates da época, que não admitiam artistas negros. Exagerava ao afirmar que cantar era a única coisa que sabia fazer na vida, mas a maior parte do seu tempo realmente dedicava à arte do canto. Admitia saber e gostar de cozinhar, mas não podia fazê-lo porque problemas de coluna lhe castigavam as costas.

A repercussão de sua perda foi extraordinária, até surpreendente em muitos aspectos. Os meios de comunicação, os companheiros dos espetáculos musicais, a população em geral sentiu a joia de figura humana que acabava de nos deixar. E fez imediata comparação com a situação do país onde vivem. Fome, pobreza, negacionismo, insegurança.

A corajosa e linda mulher de qualquer cor havia acabado de fazer a montagem de um show realizado no teatro Municipal de São Paulo, poucos dias antes de morrer. Levou com ela a lembrança de um filho pequeno que morreu de fome – de fome! – ao seu lado.

— José Fonseca Filho é jornalista

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