Fogo, Cerrado, de Marcos Wilson Spyer Rezende, ilustrado por Bruno Liberati e editado pela Geração Editoral, foi publicado silenciosamente no final do ano passado, 2020. O livro marca a estreia do autor, mas começou a ser escrito em 1962. O mais importante a ser dito sobre ele, é que Fogo, Cerrado inova sem a pretensão de inovar, e inova justamente naquilo que há de mais crucial na literatura: a linguagem. Com o propósito de construir uma linguagem regionalmente enraizada, Rezende não segue os cânones da língua portuguesa e transgride com muita coragem. O autor deu a si mesmo a liberdade de inventar uma linguagem própria, do Cerrado, que mescla vários sotaques do Brasil.
A princípio, levando-se em conta o cenário rural e os personagens, é possível supor que o livro traz de volta um tom regionalista, ou uma temática regional. É certo que os personagens de Fogo, Cerrado são bem conhecidos na história do Brasil: o coronel e seus capangas, a curandeira que desafia a medicina e o doutor da cidade, o abusador de meninas que repete as tristes e revoltantes cenas com mulheres negras escravizadas. Tudo isso é quase lá, já vi essa história, mas não é.
O contexto é dos anos sessenta, época da construção da estrada Rio-Brasília, que irá retalhar a geografia, a história do país e a vida dos moradores do Cerrado. Mas, ainda predomina o coronelismo na região e o Cerrado começa a ser ocupado por militares obcecados pela infiltração comunista no país. Isso é importante porque, tanto o Cerrado quanto as transformações que ele começa a sofrer a partir dessa década, raramente aparecem na literatura brasileira, e nunca com uma linguagem regionalmente enraizada.
Tomando um dos livros clássicos de interpretação do Brasil, Coronelismo, enxada e voto, de Vitor Nunes Leal, “o coronelismo é, sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra. Desse fenômeno, enraizado no passado colonial, resultam: o mandonismo (perseguição aos adversários), a fraude eleitoral e a desorganização dos serviços públicos locais entre outros (pág. 20).
Contexto
A região do Cerrado se vê ameaçada com a construção da nova capital do país, o movimento da marcha para o oeste, e a construção da estrada Rio-Brasília, ligando o velho ao novo distrito federal, que desestabiliza o domínio já decadente do Coronel: Coronel, João Candido, filhos dele, povo da roça, sertanejo e meeiro, posseiro, vaqueiro, e jagunço, tinham que morrer se preciso fosse para cortar o caminho dos povos que vinham do Norte, do Sul, e do Mar-Litoral que nem gafanhotos. Comendo a comida deles. Ocupando suas terras. Fincar pé era ordem que corria de boca em boca. Opção de futuro seria a de comer lavagem. Comida de porco com resto de tudo pra ser jogado fora. Era o que ia sobrar para gentes do Cerrado. Se sobrasse. (pág. 41)
Apesar da instabilidade e da decadência serem decorrentes da estrutura de produção da latifundiária, o coronel e seu clã entendem que as ameaças são pessoais. O lugar central ocupado pela pessoa – enquanto uma categoria relacional – contrasta com o indivíduo, e também com qualquer sentido de coletividade e associativismo. Contra as “pessoas de fora”, invasores acampados em terra que já tem dono, o coronel incitará seus empregados a matar.
A atmosfera do livro é marcada pela violência e pelo extermínio dos comunistas: “Coronel sabia por saber é que suas terras estavam ocupadas. Cada dia mais. Comunistas” num universo simbólico e politico imutável e autorreferente: O acampamento começava depois da cerca da rodovia, dentro mesmo da fazenda Santo Antônio. Dele! Como é que pode? Sem Companhia para pagar certinho, todo final de mês, iam de querer ser coronéis. Têm de ser expulsos. E vão ser. Amanhã de manhã começa a guerra (pág. 51) é nesse contexto, onde o Coronel é quem manda, paga, sustenta, e tem poder de polícia, que os jagunços, tão ameaçados quanto o Coronel, vão à caça aos comunistas.
Inicialmente o coronel pede a Antônio Candido que mate Zeferino comunista, mas a execução anunciada desde o início, será realizada apenas no final do livro por um menino, adolescente, filho biológico do coronel, que nasceu para ser jagunço e para isso treinou desde criança com os bichos.
O enredo segue a trilha da caça aos comunistas do início ao fim. É isso que justifica a não linearidade temporal da narrativa, assim como a submissão da cronologia dos acontecimentos ao tempo da guerra, da guerrilha. Por isso os fatos vão e voltam, por meio de personagens que antecipam o futuro obcessivamente, pois o tempo tem a urgência de quem vai matar ou morrer. O tempo que conta não é cronológico mas sim o tempo subjetivo dos personagens, em permanente estado de urgência, de guerra.
Inovação na linguagem
Cerrado não é sertão, e a dicção do narrador remete diretamente à linguagem do Cerrado. Chama atenção as frases muito curtas, às vezes de uma só palavra, ou duas, como se as frases fossem pronunciadas em soquinhos, um modo de falar típico de quem mora nas roças da região. Rezende faz emergir os roceiros com sua voz própria, suas expressões e lógica semântica. Mas, se por um lado, a pontuação e as frases curtas reproduzem uma melodia em soquinhos, por outro lado, as elipses e os saltos da narrativa parecem seguir o fluxo de um rio, certamente o São Francisco.
Se o leitor embarcar, é levado pela correnteza: “Fechou porteira. Fechou colchete. Tirou leite. Vacinou boi no tronco. Marcou garrote bravo. Tingiu berne de azul. Apartou vaca parida (…) tudo no muque. Muque de carregar sete baldes de sal grosso para encher os cochos. Eram três. Dos grandes (…) Cheiro bom de bosta seca de vaca. Cama verde. Macia. Convidadeira. Sábado nos Gerais. Véspera de morte (pág. 25)
O texto é polifônico, não há um protagonista único, mas vários personagens centrais e traz uma escrita evocativa que embaralha propositalmente o enredo e que no final chega muito próxima do delírio, deixando clara a preponderância da linguagem sobre a trama.
A voz do narrador é a mesma dos personagens: uma pessoa da região, bem enraizada, com uma dicção que remete ao nordeste e ao estado de Minas Gerais, e que tem ecos da fala de Brasília, cidade de gente vinda de todos cantos do Brasil. E o autor, muito à vontade com o discurso indireto livre, faz com que o fluxo narrativo suba em labaredas, como o fogo no Cerrado. Digno de nota são os diálogos, imbricados na voz do narrador.
A história corre e os personagens centrais vão se alternando. É com o foco em João Cândido que o livro se inicia. Vaqueiro, 47 anos, casado para procriar, mas não para amar com o corpo a mulher com quem se casou. Ele (assim como outros personagens no decorrer do livro) filosofa a partir da natureza e da vida dura no Cerrado, a luta diária pelo domínio da natureza, dos animais e dos homens. A linguagem abarca reflexões partindo de um território bem demarcado para então avançar e adquirir uma abrangência universal, um discurso sobre a natureza humana, com os animais e a terra servindo de justificativa e reflexão: “Bicho homem, vez que outra sempre, treta. Finge não saber. Bicho é fabricado de pura esperteza.
Na hora de ataque de gavião, bando maior de passarinhos deixava um de guarda. Para dar aviso. E ser comido. Cantava, levantava voo, meio metro se tanto, e gavião dava bote certeiro. Já saia despenando. Problema era quando ninguém mais queria dar aviso. E um qualquer podia ser o prato de gavião. Bando decidia então escolher um outro. Como ensinam no catecismo. Cristo morreu para salvar todos nós. Igual pássaro-preto. Bichos, homem e animal, perdem tempo não… Conhece seu lugar, na certeza. Obedece quando é para obedecer. E parte para a luta sem fim”(pág. 19)
A violência introjetada
O livro mostra a violência brutal que marca o país de cima a baixo. Tema mais do que relevante, atual e urgente. O pertencimento primordial à família, nas modalidades do compadrio e dos clãs, típica do Brasil colonial, não elimina a violência nem nas relações familiares. A violência fria, que exige o extermínio do inimigo, é também a violência sexual contra mulheres, empregados e filhos: “castigo de pai era por coisa nenhuma. Chicote. Bainha de facão. Colher de madeira… Filho que nasceu no Cerrado, onde deve de ficar para morrer-viver com o Coronel. Pelo Coronel, apanhando para aprender. Melhor forma de (pág. 117)
Tonho e Zinho, filhos de jagunço, seguindo a tradição, aprenderam cedo a matar e chegaram à adolescência bem treinados: “estavam acostumados com as mortes à morte mandada. Filhos de jagunço já nasciam jagunços. Os dois mais do que nasceram. Aprenderam com muito treinar. Ordem maior e certeira é servir e matar. Oito ou oitenta”(pág. 87). Os dois, Tonho e Zinho, aprenderam tudo o que sabem com os animais, seja lutando com um lagarto para aprender como se deve matar ou para encontrar uma cabrita para ter iniciação da sexual.
Relações entre homes e mulheres, e especialmente o sexo, estão alicerçadas na interpretação que fazem da natureza com suas leis imutáveis. Sexo é domínio, força, o gozo na vitória de um corpo sobre o outro. A virilidade do homem, do macho, a masculinidade, a valentia são contrabalanceados por códigos de honra estritos e lealdade que não admitem, por exemplo, que adultos molestem crianças: “Mariinha, moça, 13 anos. Com 11, padrasto que não era padrasto, fez dela mulher. Fié-das-unhas!”(pág. 137)
Eterno redevir
“Mãe tirava filosofia de natureza: veja a mata, parece sempre a mesma; é não; todo dia morre e nasce planta nova. Eterno redevir. Sabia que Coronel estava com a cabeça quente com a história do povo do acampamento (…) variava antes de ir para a fogueira, dar ordem final: matem Severino!” (pág. 143)
No final do livro, as mortes que acontecem sucessivas e repetidas vezes, ou seja, nos momentos em que são antecipadas por quem mata e por quem morre, dão a sensação de que o narrador foi tomado pelos personagens, pela lógica brutal do extermínio ao antagonista e por uma paranoia enlouquecedora.
O “redevir” de Fogo, Cerrado não está apenas nos temas, mas também, de novo, na linguagem. Pode ser encontrado, por exemplo, nas referências obras literárias, e aparecem de modo menos sutil nos nomes dos personagens: Madalena (prostituta), Nagib (restaurante do turco), Severino (comunista retirante) que “nem ia ter sete palmos de terra por cima de seu cadáver defunto” (referência direta a João Cabral de Melo Neto).
Vários temas abordados e que marcaram a década de 1960 estão hoje na ordem do dia no Brasil. Além da violência, a velha obsessão pela ameaça comunista, que começou na década de 1920, se intensificou nos anos sessenta e que agora retorna, não mais pelas mãos do coronel, mas do capitão, mostrando a complexidade do país e da intolerância ao oponente.
Em 1975, Victor Nunes Leal dizia não ser possível compreender o fenômeno do coronelismo no Brasil sem referência à estrutura agrária, que dá sustentação à interferência do poder privado na esfera pública, poder este ainda visível no interior do Brasil à época. Quase cinquenta anos se passaram e a mesma frase pode ser repetida: ainda hoje tão visível no Brasil. Mas, tal como sublinha Barbosa Lima Sobrinho, no prefácio deste mesmo livro clássico de Nunes Leal o coronelismo, como fenômeno social, se transforma constantemente, e cita os meios de comunicação e a urbanização como fatores que impactaram o na década de setenta.
Atualmente, pode-se acrescentar a tecnologia e os meios de comunicação. Mas o fato é que, segundo Lima Sobrinho, o coronelismo persiste, amparado na desigualdade da distribuição de renda e na ausência de garantias legais que mantém o coronel como intermediador de “diretos”. Isso também não mudou e parece que não apenas os personagens de Fogo, Cerrado, mas o país inteiro continua girando em círculos, num constante redevir.
Ana Cristina Braga Martes, mineira de Varginha, é socióloga, foi professora da Fundação Getúlio Vargas, graduada em Ciência Sociais pela UNESP, mestrado e doutorado pela Universidade de São Carlos (SP), pós-graduação no Massachusetts Institute of Technology (MIT), pesquisadora da Universidade de Boston (EEUU) e pós-doutorado no King’s College, Londres.