Bandeira branca de Bolsonaro não foi rendição

Para o cronista, "a grande tática de Bolsonaro é não ter tática", como na bem-sucedida campanha eleitoral de 2018. Desta forma, ele chegaria vivo às eleições presidenciais de 2022

Arthur Lira, Jair Bolsonaro e senador Rodrigo Pacheco - Foto Orlando Brito

Bandeira branca. Símbolo internacional de rendição ou trégua. Ao defender a vacina como prioridade, o capitão Jair Bolsonaro estaria acenando que estava entregue, que seus detratores poderiam entrar em seu reduto e fazer tudo do jeito que quisessem? Nada disso: não é de a índole do paraquedista recuar para linhas de retaguarda. Quando o soldado dessa especialidade entra em combate sabe que não tem volta: ou vence, ou perde. As linhas amigas seguras ficaram para trás quando saltou no desconhecido. É assim que funciona a cabeça do presidente da República, cérebro lavado nas escolas militares e nas casernas para o sacrifício sem titubear, como dizia a letra maldita de Geraldo Vandré.

Os velhos brasileiros que foram conscritos do Exército antes da inflexão para força de guerra interna, quando os recrutas eram treinados para enfrentar o inimigo externo, naqueles tempos ainda a poética Argentina (que fazia o mesmo de seu lado e as juventudes dos dois lados viviam em paz), sabem do que se fala aqui. Desde que as Forças Armadas voltaram seus poderios das fronteiras para dentro das universidades, desajeitadas e, em parte, truculentas, criando um trauma até hoje indelével, sobraram apenas alguns núcleos de excelência ainda focados na sua destinação histórica, alcançando níveis sensacionais de eficiência e conhecimento.

Bolsonaro vem de outro Exército. Um resquício dos velhos tempos é que a infantaria paraquedista não é mais aquela força de assalto fatal que enchia a imaginação. Hoje em dia ainda é uma tropa de elite, mas que perdeu para o helicóptero a sua função tática e estratégica, e sobrevive perdida entre duas épocas do aparato bélico. A última aventura do paraquedismo romântico foi a grande batalha da Operação Market Garden, nos Países Baixos, na Segunda Guerra Mundial, em que o tenente-general britânico Frederick Browning comandou os saltos de mais de 50 mil paraquedistas ingleses, canadenses, norte-americanos e poloneses no raide épico imortalizado no livro (e filme depois) de Cornelius Ryan, “Uma Ponte Longe Demais”. Este é o filme de Bolsonaro. Chegará a sua ponte com a fala da última quarta-feira? É uma aposta.

Estado de Sítio 

Getúlio Vargas no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro

Feita a apresentação do personagem, dá para perceber que está longe do capitão a perspicácia do político brasileiro, tradicional ou “novo”. Não é o hábil mineiro, nem o objetivo paulista, tampouco o negociador nordestino ou o voluntarista sulista. Um paraquedista no poder é algo novo. Parecido, talvez somente o mineiro Arthur Bernardes (1922/26), que governou de chicote na mão, com Estado de Sitio de ponta a ponta, levando pau de todos os lados, e ainda tinha nos calcanhares o também capitão (de Engenharia) Luiz Carlos Prestes e sua terrível “Coluna Invicta”.

Bolsonaro não passa por tais percalços: seus mais duros detratores são as comentaristas da tevê e o âncora do Jornal Nacional, Willian Bonner. Dá para levar. Assim como Bernardes, passou o bastão para Washington Luís (que tinha Getúlio Vargas como Ministro da Fazenda), Jair deve chegar, aos trancos e barrancos, a 2022 ou, até mesmo, se a oposição não se recompuser, quatro anos mais, sempre nessa levada.

Contra-ataque tático 

Resta especular sobre o sentido e o objetivo desse último movimento do presidente da República, indicando retirada estratégica, mas ainda não uma rendição: tirou o ministro queimado (general de divisão Eduardo Pazuello) e botou suas fichas na vacina e num professor de Medicina consagrado. Parece um laivo de sensatez. Possivelmente é isto mesmo.

Não dá para ficar a dar socos em facas de ponta inutilmente. Este fato político e administrativo, analisado com lucidez pelo jornalismo profissional do cronista Andrei Meirelles, d’Os Divergentes, na manhã de quinta-feira, metaforicamente revela um contra-ataque tático para romper um cerco. Assim faz o paraquedista encurralado.

Imagem de Jair Bolsonaro diante do Supremo Tribunal Federal, em Brasília – Foto: Orlando Brito

Tremulando a bandeira branca, pode amainar o fogo inimigo e conseguir algum espaço para se recompor. É verdade que esperava mais, mas deu com a cara na porta. Porém, com sua Comissão e os primeiros gestos, pode se mexer e entrar no campo dos vacinadores, o que é essencial e de resultado certo, pois há 200 anos são as vacinas que têm resolvido esse tipo de problema da humanidade. É ingenuidade achar que o capitão não sabe disso ou, como dizem alguns abobados, que ele realmente pensa que a Terra é plana. Ele diz que é, mas sabe que não é, até porque já voou a grandes altitudes nos aviões da Divisão Aeroterrestre, para ver a curvatura do planeta. Mas é bom fazer-se. Melhor que se pense que ele é mais tonto do que realmente é.

O fio da navalha 

Os ex-presidentes FHC e Lula no Palácio do Planalto – Foto: Orlando Brito

É assim que se explica a desenvoltura com que Bolsonaro caminha sobre o fio da navalha. Destemor. Ao aderir à vacina, tanto tempo depois, ele fez um cálculo, pois seus assessores da Intendência militar podiam prever que faltaria vacina. Isto estava acontecendo no mundo inteiro, basta ver as manifestações de rua violentas na Alemanha, Inglaterra e outros países citados como exemplos. Não é fácil. Bolsonaro aderiu à vacina quando ficou certo de que em tempo hábil, meses, ainda antes da campanha eleitoral, o suprimento estará regularizado no Brasil. Então ele poderá se jactar, mais do que se associar, reivindicar protagonismo. Com as novas fábricas em funcionamento, no Butantã e na Fiocruz, será resgatado pela invejável estrutura do SUS, que herdou dos “socialistas” do MDB da Constituinte de 1988, sempre aperfeiçoadas pelos “comunistas” FHC, Lula e, até, Dilma.

Antes que muitos outros países se resolvam, o Brasil estará dando aulas ao mundo no setor de saúde pública. Não há como duvidar. Só falta a vacina e ela está chegando. É com esse socorro dos céus que conta o paraquedista para se livrar da embrulhada em que se meteu, pois, deve-se supor, ele não imaginava, quando falou de “gripezinha”, que a situação chegasse onde chegou, e que ficasse tanto tempo a lhe puxar os pés. Este é um lado. Vamos ao outro.

Negacionismo defensivo 

O negacionismo é uma posição defensiva. Para o presidente e seu esperto ministro da Economia, Paulo Guedes, o principal numa crise dessa magnitude é não ficar com os bolsos vazios. Embora a propaganda fale do auxilio emergencial como ação decisiva para manter a paz interna, o Posto Ipiranga sabe que não pode faltar caixa para pagar funcionários e aposentados. Aí está o olho do furacão. Para tanto, precisa arrecadar, pois não há reservas no fundo do cofre. Com isto, mesmo precariamente, eles mantêm seus estados e municípios de pé, sem pedir muitos favores, pois a arrecadação é automática.

Ministro Paulo Guedes, da Economia – Foto: Marcos Corrêa/PR

Bolsonaro e seus assessores sabem que não são as festinhas que aparecem na tevê que espalham a peste, mas as aglomerações de trabalhadores em ônibus e vagões, em plataformas de estações e terminais urbanos. Só muito recentemente que a mídia descobriu isso aí, e deixou de culpar jogadores de futebol e cantores pela segunda onda do coronavírus. Enquanto isto, autoimunizado, Bolsonaro circula alegremente sem máscara e abraça contaminados, como faziam os positivistas nos tempos de seu antecessor, artilheiro Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro.

Lockdown e povão 

Ruas vazias durante o lockdown no Rio de Janeiro – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O lockdown, tão caro aos espectadores de tevê a cabo, uma excentricidade tão absurda para um suburbano brasileiro, que sequer tem nome em português, é um luxo da classe média fornida, pensa o presidente, onde ainda detém um forte apoio turbinado pelo antipetismo dos moralistas anticorrupção, engordado nos últimos dias pela confusa e mal explicada “libertação” do ex-presidente Lula da Silva. O povão está fora desse luxo sanitário. Vive da mão para a boca. Cada vez que pega um ônibus para trabalhar onde for, pinga ICMS do óleo diesel no cofre do governador. Passa no supermercado, cai um IPI na bolsa do Guedes (a arrecadação de fevereiro foi recorde). De quebra, há uma volta de troco para o prefeito da cidade em que se fez a despesa.

É isto que está ocorrendo, pois se as medidas de isolamento fecham o comércio de bens duráveis e outros produtos não essenciais, paralisam os serviços convencionais, mas estes são arrecadadores difusos, importantes para gerar renda, mas não tributos diretos. A renda remanescente entra pelos supermercados e portos de combustíveis ou, ainda, turbinada pela já iniciada safra de verão do agronegócio, que irriga todos os segmentos, públicos e privados, e distribui renda pelo interior do País. É aí que está a raiz do negacionismo.

Livrinho do Dutra 

Assim se explica a bandeira branca do presidente Jair Bolsonaro, que nem sente cócegas com as críticas, pois daqui para frente o tempo corre a seu favor. Ele bateu em vão na porta, mas pulou a janela e encontra um cantinho para ir se acomodando e se alargando. Há grandes problemas, inclusive na área política, mas não é o caso desta crônica. Centrão inquieto, militantes direitistas hidrófobos, esquerdistas desatinados, centro direita formando a tal frente de salvação com Lula e tucanos, uma tempestade perfeita, pois até Delfim Netto botou as luvas de box.

Para se segurar, conta com a Constituição e, se cumprir os preceitos do “livrinho”, como dizia o ex-presidente general Eurico Gaspar Dutra, terá mais segurança do que lhe dariam os canhões e cassetetes, tal como imaginam as mentes alucinadas dos vetustos jovens dos anos 1960/70. Não custa lembrar: a grande tática de Bolsonaro é não ter tática. Coisa de paraquedista. Não foi assim que ele aterrissou no terceiro andar do Palácio do Planalto enquanto as forças políticas negavam sua existência?

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