A saga do grande dicionário da língua tupiniquim

Cézar Motta: o autor e sua obra

Recentemente assistimos a um filme – O gênio e o louco, obra mediana, mas encenada com dois bons atores: Mel Gibson e Sean Penn – no qual fomos informados de que um dos principais colaboradores do dicionário Oxford era um assassino maluco, norte-americano, encarcerado na Inglaterra por ter matado um homem em um surto psicótico.

Um dos nossos mais famosos dicionários, o Aurélio, tem agora a sua história registrada em um livro. Nada de tiroteios, assassinatos, neuróticos às pencas e genialidade, como se dá em geral nos filmes americanos. Em Por trás das palavras (Máquina de livros, 187 páginas), escrito por Cezar Motta, vamos encontrar condimentos bem brasileiros: uma via dolorosa em busca de financiamento, atrasos em série na data de lançamento, duas demoradas disputas jurídicas pela autoria da obra e uma larga esteira de fortes danos financeiros sofridos pelos que ousaram se associar ao empreendimento. Tudo isso amarrado com boas historinhas.

Aurélio Buarque de Holanda em sua biblioteca – Álbum de Família

Forçando a aproximação entre duas obras de artes diversas, podemos nomear como o “gênio” tupiniquim o fabuloso Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, alagoano nascido em 1910, figura cativante, segundo todos que o conheceram. “Um homem de muitos amigos, expansivo, sedutor, falante, cheio de histórias que contava com riqueza de gestos e em voz alta”, assim o define o autor do livro.

Um personagem de Rabelais, encantador, que prestava a máxima atenção ao seu interlocutor, como se esse fosse a pessoa mais importante do mundo, acrescentam outros depoentes.

Alto e robusto, cabelos arruivados e bochechas encarnadas, Aurélio formou-se em Direito (que nunca exerceu), foi professor de Português, lexicógrafo, filólogo, ensaísta arguto e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi também literato bissexto, leitor fanático, grande conversador, pesquisador incansável, apreciador da boa mesa e nadador eventual.

Proprietário de uma memória prodigiosa, que lhe permitia recitar poemas inteiros e trechos de obras em prosa de grandes autores, tinha uma particularidade que levava à loucura os que se aproximavam dele – não cumpria prazos nem com reza brava.

Cena de “Brancaleone”, de Mario Monicelli

Ao lado dele, no palco, em posição de destaque, representando o “louco”, está o jornalista maranhense Joaquim Campelo Marques, nascido em 1931. Trabalhador compulsivo, casmurro e zombeteiro cruel tinha na sua cabeça dura apenas uma meta: levar até o final aquele dicionário cuja construção se arrastou, entre idas e vindas, por quase duas décadas.
O certo é que esse empreendimento – cujo marcha acidentada, com certa malícia, podemos comparar ao tumultuado avanço de L´armata Brancaleone (Mario Monicelli, 1966) – acaba sendo, em 1975, um dos maiores acontecimentos da nossa indústria editorial. Em menos de um ano, foram vendidos 183 mil exemplares de um livro cujo custo unitário, atualizado, seria hoje de 120 reais. Em suma, um faturamento 20 milhões de reais. Muita bufunfa, convenhamos, para uma nação ágrafa.

O Novo Dicionário Aurélio virou best seller instantâneo! Até a virada do milênio, venderia 15 milhões de exemplares. As tiragens do Aurelião, como o chamavam seus usuários fanáticos, sobrepujaram com folga até o mesmo o antes imbatível Jorge Amado. O tijolaço de 1.536 páginas pesava três quilos.

O escritor Jorge Amado, na Praia do Rio Vermelho, em Salvador

Em meados dos anos 1960, quando parte para a construção do léxico que levaria seu nome, Aurélio já tinha estrada percorrida. Começara na década de 40 como responsável pelos “brasileirismos” do Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, editado pela Companhia Editora Nacional, empresa criada por uma das maiores figuras da nossa literatura: Monteiro Lobato.

Em 1.951, quando o imenso poeta Manuel Bandeira, alegando corpo e vistas cansados, deixa de ser o principal revisor dessa obra, Aurélio assume a função. Joaquim Campelo chega ao Rio de Janeiro em 1950. Filho de um comerciante português bem sucedido de São Luís, ingressa em 1952 na Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap). É lá que ele vai conhecer Aurélio, um dos professores daquele estabelecimento que tinha como objetivo a formação de quadros para a burocracia estatal.

Surge entre os dois uma forte ligação intelectual.

Também cultor da língua portuguesa, integrante de uma valiosa geração de intelectuais maranhenses, leitor insaciável, o jovem Campelo se sente atraído pela vasta erudição do pedagogo. Passa então a trabalhar para ele como uma espécie de ajudante não-remunerado, corrigindo as provas que Aurélio aplicava em seus alunos do Pedro II e de outras escolas.

E, também, ajudando o mestre na constante revisão do Pequeno dicionário.
O desligado Aurélio julgava que Joaquim Campelo fosse muito rico, que recebia polpudas prebendas de família. Mas não era nada disso. Para manter-se, o jovem ralava em misteres mal remunerados. Mais adiante, na Faculdade de Filosofia, cursará Jornalismo, profissão da qual arrancará seu pão enquanto o dicionário estava sendo gestado.

Vejamos o retrato de Campelo traçado por Cezar Motta: “Aplicado, detalhista, capaz de trabalhos solitários em recintos fechados por várias horas, desconfiado, casmurro, alto para os padrões da época, magro, ascético, com um rosto moreno em que se aninhavam fartos bigodes em formato de trapézio, às vezes acompanhados de cavanhaque, Campelo era o auxiliar ideal. Principalmente porque trabalhava de graça. Raramente se irritava ou perdia o controle: em situações polêmicas, lançava mão do sarcasmo e ironia, suas armas”.

A saga do mais famoso dicionário brasílico começa lá pelo final dos anos 1950 quando dois grandes escritores, Marques Rebelo e Herberto Sales, vendem para O Cruzeiro a ideia de publicar em fascículos, encartados na revista, um dicionário. E sugerem para mentor desse glossário um amigo de ambos: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

A direção da revista topou a empreitada, mas cumpriu apenas em parte o acordo: pagou a Aurélio um pró-labore. Mas não proporcionou a ele os indispensáveis colaboradores. O dicionarista, pelo seu lado, não entregou a mercadoria.

“O fracasso do projeto arranhou tanto a imagem da revista, já decadente, como a do próprio Aurélio”, registra Motta.

Em 1965, chega o financiamento, pelas mãos de Abrahão Koogan, empresário bem sucedido, proprietário de mais de dez editoras. Koogan aluga o sexto andar de um edifício em Botafogo e contrata uma equipe de seis pessoas, que mais adiante chegará a 14. A obra deveria ser entregue em 18 meses. Passados dois anos, necas de pitibiriba! Koogan perdeu a paciência.

“A coisa empacava justamente no Mestre Aurélio, que retinha o trabalho pelo seu natural perfeccionismo, tentava sempre enriquecer cada verbete com abonações que insistia em procurar em autores consagrados. Era comum que verbetes simples ganhassem mais de cem acepções diferentes”, anota Cezar Motta.

Campelo vai novamente à luta. Constitui uma empresa editora com os demais auxiliares de Aurélio e parte em busca de outra fonte de financiamento. Encontra-a em São Paulo, onde tem ex-colegas da Ebap endinheirados. Pelo contrato, no prazo de um ano, em 1970, sairia um dicionário pequeno, enxuto. Que nada! Em 1972, estourado o prazo em dois anos, os pacientes paulistas jogaram a toalha junto com o sabonete.

Carlos Lacerda

Em abril de 1974 seria firmado um outro contrato, com a editora Nova Fronteira, de Carlos Lacerda, por onde realmente o livro saiu e foi o retumbante sucesso de que já falamos. O Aurélio teve, depois, uma edição resumida, escolar, o minidicionário, que fez um sucesso ainda mais estrondoso.

A trajetória posterior do livro não foi menos acidentada que sua gestação. Mais adiante, vieram duas querelas jurídicas entre Aurélio e, depois, seus sucessores e os integrantes de sua equipe, dentre os quais Campelo. A primeira ação correu entre 1981 e 1985 justamente por conta dos royalties do minidicionário. A segunda ação estendeu-se desde 2003 – quando os herdeiros do lexicógrafo trocaram a Nova Fronteira por outra casa editorial – até 2013.

Autor do exitoso Até a última página, Uma história do Jornal do Brasil, o duas vezes fluminense (porque nascido em Niterói e torcedor do mais distinto clube de futebol do Rio de Janeiro) Cezar Motta é um bom contador de causos, e é enfileirando muitos causos divertidos que ele torna agradável a leitura desta sua nova obra.

Assim, para encerrar esta resenha que se espicha mais que esperança de pobre, fiquemos com dois. A palavra mais linda da língua portuguesa, de acordo com Mestre Aurélio é libélula, porque lembra “uma coisa alada, liberdade e leveza”. Mas um dos sinônimos de libélula, curiosamente, como lembrou o mestre a um famoso humorista, é lava-bunda.

Joaquim Campello Marques

Joaquim Campelo, por sua vez, é o criador (nos anos 1970) de um (lascivo? licencioso? lúbrico? luxurioso?) neologismo, hoje corrente na língua de Camões que falamos na terra dos papagaios: passaralho, sinônimo de demissão em massa de trabalhadores. Palavra que ele próprio assim definiu com seu habitual rigor científico e precisão: “designação popular e geral da ave caralhiforme, falóide, família dos enrabídeos (Fornicator caciquorum)”.

 

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