A cada hora, uma versão

Difícil o exercício retórico que a claque é obrigada a fazer cada vez que o chefe muda o discurso

Costumo ler e acompanhar postagens de quem pensa diferente de mim, procurando manter um certo distanciamento e, sempre que possível, o respeito pela opinião alheia. (Digo “sempre que possível” porque às vezes não dá para ser conivente com certas ideias). Faço isso como um exercício dialético, como uma forma de sair da zona de conforto e da bolha que seria me relacionar apenas com quem comunga de pensamentos parecidos com os meus.

Fico feliz quando encontro pessoas que não cabem em caixinhas conceituais e acabam me surpreendendo. Essas são a minoria.

A maioria é muito previsível. Há alguns que simplesmente reproduzem tudo o que recebem, sem o menor compromisso com a veracidade da informação ou com o bom senso. Querem apenas provar, talvez para si mesmos, que estão certos e acreditam que a sua verdade é a única possível.

Há outros, poucos, que se escondem sob o escudo de uma pretensa intelectualidade para defender a mesma coisa que a turba ensandecida defende. Querem se distanciar da pessoa comum, talvez para provar que há vida inteligente nesse mundo aparentemente rasteiro.
Acho interessante o exercício retórico que uma certa claque é obrigada a fazer sempre que o chefe da torcida muda o discurso. E acho tenebrosa a agilidade com que se articulam, sejam com robôs ou gente contratada, para cancelar pessoas que deixam de rezar na sua cartilha. Ou para justificar posições quase injustificáveis.

Quando Moro era herói dos Bolsonaristas – Foto Orlando Brito

Moro era o herói do Brasil, de repente virou o traidor, quase um bandido. Que cavalo-de-pau! Não sei o que fizeram com todos aqueles bonecos infláveis…

O Centrão era um antro de corruptos de quem se deveria manter distância, agora é o aliado de primeira hora. Não dá pra esquecer do general Heleno cantando: “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”.

A vacina era um risco que deveria ser evitado, muitos diziam que jamais se vacinariam, muito menos com o imunizante chinês, mas agora é a solução do problema.
(Sempre bom lembrar que a demora na mudança desse discurso fez com que milhares de mortes “evitáveis” acontecessem).

A turba agora se posiciona contra o lockdown, como se prefeitos e governadores tivessem prazer em ver a economia de cidades e estados derreter. Ou como se houvesse outra solução para evitar que pessoas morram nas filas dos hospitais sem atendimento.

Questionam o número de mortes, acham que é exagero da mídia, mas, por outro lado, tentam emplacar a ideia de que se houvesse tratamento precoce não haveria tanta gente morrendo. Além de brigarem contra o lockdown, brigam pelo direito e pelo estímulo ao tratamento precoce. Um amigo morreu recentemente de COVID apesar de seguir toda a cartilha de medicamentos de Bolsonaro.

O que está posto é: basta tomar ivermectina, cloroquina e azitromicina para que não se desenvolva o estado grave da doença? Um dos médicos da linha de frente na tragédia de Manaus declarou que a grande maioria de seus pacientes graves fizeram o tratamento precoce. E grande parte morreu.

Ninguém está proibido de tomar os remédios, o que não dá é para amenizar os efeitos da doença, afirmando que basta seguir esse protocolo para que a pandemia seja controlada, como tem sugerido o líder da claque.

A única forma de evitar tragédia maior do que a que estamos vivendo é manter ou até mesmo aumentar o distanciamento social, estimular o uso de máscaras e a higiene pessoal, e acelerar o processo de vacinação.

O resto, como cantou Caetano em seu maravilhoso álbum Uns, é: “Bobagens, meu filho, bobagens”!

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