A “bala de prata”

O sistema multipartidário adotado no Brasil tem qualidades e defeitos. Mais defeitos do que qualidades. Foi imaginado por Golbery do Couto e Silva, também conhecido como “O Bruxo”, um dos cérebros do regime militar (1964-1985)

Ao perceber que o período de ditadura se aproximava do fim e levaria consigo o regime bipartidário, o Chefe da Casa Civil do presidente João Figueiredo tratou de instituir sistema de regras onde a simplicidade de fundação de partido e a ambição do poder conduziriam à pulverização das legendas.

O general Golbery com o então presidente Geisel na rampa do Planalto – Foto Orlando Brito

Os fatos estão aí a demonstrar como estava certo o astuto general. Temos hoje 30 partidos reconhecidos pelo Superior Tribunal Eleitoral e outros tantos já organizados, com pedidos de registros à espera de aprovação. São partidos de ocasião, desprovidos de conteúdo ideológico, debilitados pela infidelidade de dirigentes e filiados, alimentados com recursos do Tesouro Nacional sem os quais deixariam de existir.

O vácuo ideológico das legendas se reflete na personalidade da maioria dos candidatos. São vagamente de direita, de esquerda, de centro direita, de centro esquerda. Alguns mais ignorantes apregoam falsa posição radical. Quase todos, porém, uma vez eleitos, se deixam atrair pela força do “centrão”, agrupamento instável, imoral e informal, cuja ideologia consiste na busca do poder pelo poder e pelo dinheiro.

Presidente Vargas nas comemorações do Dia do Trabalho, no estádio de São Januário, no Rio, em 1° de maio de 1952. Arquivo Nacional.

O declínio da ditadura de Getúlio Vargas, implantada em 10/11/1937 e derrubada em 29/10/1945, estimulou a criação de três partidos: o Partido Social Democrático (PSD), representante do pensamento conservador; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), suposto porta-voz das classes trabalhadoras; a União Democrática Nacional (UDN), opositora do governo, com penetração nas Forças Armadas. Após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1946, novas legendas foram criadas. Nenhuma, porém, investida da representação e força das três primeiros.

João Goulart no histórico Comício dos 100 mil

Até a derrubada de João Goulart (31/3/1964), as disputas políticas se revestiam de algum verniz ideológico. As forças da direita e da esquerda se encontravam razoavelmente definidas, graças, também, ao ressurgimento do Partido Comunista, colocado na ilegalidade no início do governo do presidente Gaspar Dutra (1946-1950). Além do PSD, PTB e UDN, partidos menores, de atuação regional, procuravam se fazer presentes. Assim acontecia com o Partido Democrata Cristão (PDC), o Partido Social Progressista (PSB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Os demais se satisfaziam sendo meros figurantes.

Consolidado o golpe de 1964 pelo Ato Institucional de 9 de abril, o presidente escolhido pelos militares, general Castelo Branco, baixou o Ato Institucional nº 2, de 27/10/1965. Dissolveu os partidos e acabou com as eleições diretas para presidente e vice-presidente da República. Dias depois, pelo Ato Complementar nº 4, de 20/11/1965, estipulou as condições para a fundação de organizações com características de partidos políticos.

General Figueireido eleito pela Arena no Colégio Eleitoral – Foto Orlando Brito

Gerados de cima para baixo, a Aliança Democrática Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) necessitavam de recursos financeiros. A Lei nº 4.740, de 15/7/1965, denominada Lei Orgânica dos Partidos Políticos, instituiu, com esse objetivo, o Fundo Partidário, abastecido com recursos do Tesouro Nacional. Para coroar a obra, a Constituição de 1988 conferiu ao Fundo a patente de direito constitucional e a ele o Poder Legislativo, agregou o Fundo de Financiamento Eleitoral.

Com dinheiro abundante e plena autonomia para gastar, os partidos proliferaram como moscas no estrume. Dada a quantidade e a necessidade de representação expressiva, pois dela depende o volume de dinheiro do Fundo, foram afrouxados os critérios de escolha de candidatos. Buscam os dirigentes nomes de popularidade fácil, embora pobres de conteúdo intelectual, cultural e ético. Ser famosa, ou famoso, é a exigência. Não interessam as reais qualidades. Assim se explica a repentina ascensão política de mulheres e de homens de caráter frouxo e repulsivo.

Compete ao eleitor proceder à seleção que o partido se recusa a fazer.     A sobrevivência da democracia é ameaçada pelo enfraquecimento do Poder Legislativo, volúvel marionete do Poder Executivo. Senadores e deputados federais são responsáveis pelo desprestígio da Constituição. Pertence aos eleitores a responsabilidade de recuperação da dignidade perdida. O voto secreto, direto, com igual valor para todos, é a “bala de prata” de que dispõem os eleitores, se souberem usá-lo.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Ex ministros do Trabalho, foi presidente do Tribunal superior do Trabalho

Deixe seu comentário