Faltam mulheres nas gôndolas dos supermercados

Na história da inflação, mal tão conhecido dos brasilianos, houve o tempo da cebola e dos bois arrestados. Houve o tempo da corrida entre consumidores e remarcadores de preços. E há as compras nesses tempos de pandemia do coronavírus

Está faltando mulher na gôndola do supermercado. O novo e normal mercado virtual deu um alívio aos varejistas do setor de alimentos, porque aquelas incômodas senhoras desapareceram das suas lojas. Em lugar delas, estão funcionárias atenciosas de celular à mão enchendo sacolas para a rápida entrega dos motoqueiros. Resultado: os preços desses produtos explodem, a inflação dá um salto em meio à recessão e as senhoras, isoladas em suas residências, a se queixarem, além disso, da qualidade de frutas, verduras e outros itens de perecíveis.

Embora pareça politicamente incorreta, esta é uma função tradicional das donas-de-casa que nem mesmo as feministas abrem mão: olhar, apalpar e não se deixar enganar. Certamente esse movimento foi um dos principais instrumentos da estabilização da economia, do Plano Real para cá. Esse mecanismo de controle de preços pelo próprio consumidor foi uma primeira vitória sobre as maquininhas dos remarcadores de mercadorias nos tempos da inflação alucinada.

No tempo dos remarcadores 

Supermercados modernos – Foto: Fernanda Cruz / Agência Brasil

Então, as consumidoras tinham outra adversária a vencer antes do corpo a corpo com os preços, que era a necessidade de comprar o quanto antes, pois a moeda perdia valor dia a dia. Muitas vezes hora a hora, como comprovavam os remarcadores de preços que competiam com os consumidores em volta das prateleiras, colando os tíquetes com os novos valores. Não havia código de barras que alcançasse a velocidade dos aumentos. A conferência era nos caixas, onde olhos de lince das caixas captavam os valores um a um. Não havia tempo para escolher nem pechinchar. No máximo a freguesa conseguia acompanhar os dedos ágeis digitando sobre o teclado.

Com a estabilidade, dos anos 1990 em diante, aquela busca frenética nas gôndolas foi se acalmando, e o que se via eram senhoras com listinhas na mão, com preços daqui e dali, conferindo as mercadorias e seus valores. O gerente atento acompanhava o movimento e, quando percebia uma recusa generalizada num ou noutro item, podia saber que algum concorrente o estava oferecendo por menos. Nesse tranco, estabeleceu-se um novo equilíbrio.

E assim vinha funcionando esse mercado de livre concorrência, configurando-se desde os primeiros tempos do autosserviço, quando as compradoras perderam o contato direto com o balconista da mercearia, lá nos anos 1960/70 e ficaram à mercê do preço fixo. Até chegar à pandemia e banir as consumidoras desse frente-a-frente com o capitalismo. O mercado voltou a ser do vendedor.

Não há muito o que fazer, pois mesmo as ofertas pela internet não oferecem margem de manobra para o cliente. Como no passado remoto, o governo começa a dar sinais de que gostaria de intervir nesse processo, procurando dar a entender que está do lado do mais fraco. Ouve-se aqui e ali que se fala em tabelar o preço do gás de cozinha, segurar a alta dos combustíveis, ou seja, restaurar velhas tentativas de controle administrativo do mercado.

Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro

Há críticas, ora lembrando do desastre que essas políticas intervencionistas produziram no equilíbrio das estatais (especialmente na Petrobrás e sistema elétrico) e de suas repercussões na macroeconomia, desequilibrando as contas púbicas. O que não se recorda é como naufragaram todas as tentativas do passado, desde quando o então vice-presidente no exercício da presidência, Floriano Peixoto, em 1893, mandou prender os chamados açambarcadores. De chicote na mão, o artilheiro alagoano mandou levar para a prisão os atacadistas de São José do Norte (RS) que estariam especulando com os preços da cebola, um alimento (ou condimento) produzido apenas naquele município gaúcho, cujo solo permitia o cultivo desta amarilidácea. Foi um fiasco, pois cortada a oferta, os preços subiram mais ainda e refletiu-se na batata inglesa, que também vinha do Sul pelos mesmos canais de suprimento.

Paraíso dos varejistas 

O presidente Getúlio Vargas no Palácio Catete

Assim como o Marechal de Ferro, depois, já nos anos 1930, o gaúcho Getúlio Vargas tentou influir no mercado, sem êxito, criando organismos oficiais que atuavam diretamente no mercado, sendo mais famosa a Cofap, que tinha armazéns próprios e açougues. Não deu. No regime de 1964 chegaram a capturar boi no pasto (um fracasso, pois os delegados da Policia Federal, encarregados da missão, urbanoides, foram expulsos das pastagens pelos chifres dos bois zebus, tentando, inutilmente, embarcar o gado nos caminhões do governo.

Até chegar à estabilidade da moeda e botar as coisas nos lugares que vinham ocupando até então, fortemente amarrados pelas donas-de-casa diante das gôndolas dos supermercados (também nas feiras-livres praticamente desaparecidas). Fica a pergunta: como restaurar o livre-mercado perfeito no mundo virtual? Até a vacina chegar com tudo para recolocar as coisas nos seus lugares, o Brasil viverá o paraíso dos varejistas.

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