O debate sobre a utilização do câmbio como instrumento de crescimento da economia hoje no Brasil é bem antigo. A abordagem de dois economistas italianos sobre a eficácia da política cambial do Reino de Nápoles no século XVII tem muita semelhança com a situação atual do País.
O Brasil poderia crescer ao desvalorizar o real diante do dólar, dando maior competitividade às exportações, aumentando a produção e geração de emprego, como tem dito o ministro da Economia, Paulo Guedes.
A conversa vem de séculos. A desvalorização ou valorização do câmbio pode produzir efeito momentâneo como força auxiliar ao comércio exterior, mas está longe de ser um instrumento de geração de riqueza e desenvolvimento econômico a um País.
A conclusão não é minha ou de qualquer mente privilegiada da atual geração de economistas brasileiros. É produto de uma discussão acadêmica mais remota no tempo, registrada no mundo da economia política, no século XVII, travada entre dois napolitanos: Marco Antonio de Santis e Antonio Serra, em torno dos benefícios ou malefícios do uso do câmbio como instrumento de acumulação de riqueza daquele então reino italiano.
Como gerar riqueza
As causas comuns de geração de riqueza dos reinos, com exceção daqueles que possuíam minas de ouro ou prata, são: produção de grande quantidade de manufaturas, diligência dos seus habitantes em empreender, ampliação do comércio dentro e fora do reino e sabedoria de quem governa.
O conceito foi apontado por Antonio Serra no “Breve Tratado das Causas que Podem Fazer os Reinos Desprovidos de Minas ter Abundância de Ouro e Prata”, escrito em 1613, dirigido ao vice-rei de Nápoles, dom Pedro Fernandes de Castro, em contestação à política intervencionista de câmbio sugerida por Marco Antonio De Santis.
Hoje reconhecido como um dos mais antigos economistas a escrever um texto sobre política econômica, o “Breve Tratado” teve sua primeira tradução, no mundo, em 2002, para o português, feita em Curitiba por um casal de italianos: o economista Andréa Vicentini e a professora de Língua e Literatura Italiana, Marzia Terenzi Vicentini.
Há muitas semelhanças na problemática da economia brasileira de hoje com a do Reino de Nápoles, no século XVII. Serra está falando de um reino que enfrenta dificuldades em uma fase de transição entre o feudalismo e o mercantilismo.
Transição industrial
O Brasil vive a era da transição de uma sociedade industrial para pós-industrial. Ressalve-se, porém, que essa seria a analogia entre as duas realidades, o fato de as experiências serem executadas em nações com grande potencial de produção agrícola, com pouca presença no mercado externo com seus produtos manufaturados, com escassez de recursos monetários e poupança interna insuficiente para financiar o seu desenvolvimento.
Antonio Serra escreveu suas teses em uma época em que o Reino de Nápoles esteve sob a Coroa Espanhola (1504 a 1707), governado por um vice-rei espanhol. A maioria dos negociantes que dominavam o comércio de Nápoles era de estrangeiros, quase todos espanhóis; daí porque grande parte dos recursos obtidos com exportação de produtos agrícolas não voltava ao país de origem. A experiência de Nápoles foi usada por Serra para comparar-se com a República de Veneza, que, apesar de não possuir minas de ouro e prata e possuir uma fraca produção de alimentos, era rica e tinha moeda forte.
O segredo estava na capacidade de produção de bens manufaturados, na posição favorável ao comércio e na capacidade de seus cidadãos de negociar em todas as partes do mundo e acumular riqueza.
Câmbio como fator de desenvolvimento
De Santis sustentava a adoção de medidas legislativas — uma espécie de câmbio administrado subvalorizado — como fator de abundância de moeda e riqueza no Reino de Nápoles. Antonio Serra, ao contrário, refuta a utilização do expediente cambial de valorização ou desvalorização da moeda como instrumento de desenvolvimento.
Chega, mesmo, a comprovar que uma desvalorização cambial, nas condições de Nápoles, era fator de geração de pobreza e não riqueza.”Devendo-se considerar a baixa taxa de câmbio como condição momentânea, ela deve se subordinar ao comércio, ocorrendo o mesmo com o baixo valor dos títulos (papéis cambiais), enquanto o valor elevado da moeda deve ser subordinado à sabedoria do governante”.
Mas essas políticas ou outras semelhantes não podem ser consideradas causas de abundância de dinheiro, nem mesmo subordinadas, mas tão somente condições, pois não produzem necessariamente tal efeito, ainda que, para De Santis, “a baixa taxa de câmbio pareceu ser, não apenas uma causa poderosa para obter abundância de dinheiro, mas a única, assim como o valor elevado da moeda”, sustenta Serra.
Fundamentos econômicos renascentistas
O câmbio, na visão do economista renascentista italiano, deve ser a expressão de um conjunto de fundamentos econômicos articulados. São eles:
1) “A grande quantidade de manufaturas fará com que um reino ou uma cidade tenham abundância de dinheiro quando neles se exercem muitas e variadas artes, que produzem bens necessários, cômodos ou agradáveis aos homens, uma quantidade que excede a necessidade do país. As manufaturas não só devem ser postas em primeiro lugar, mas também devem ser preferidas à superabundância natural dos produtos da terra, a comercialização dos produtos manufaturados é mais segura do que a dos produtos agrícolas (fala dos problemas de conservação dos estoques), em consequência, o ganho é mais certo”, relata. Ele explica as vantagens de ampliação da produção em escala das manufaturas, dá ideia do que seria produtividade e seus resultados em relação à atividade agrícola limitada pelo espaço físico. Compara a riqueza de Veneza, construída a partir da atividade de manufatura, com as dificuldades de Nápoles, cuja vocação era agrícola.
2) “A diligência dos habitantes existe num reino quando os habitantes, por índole laboriosos, aplicados e de tal forma criativos, comerciam seus produtos não apenas em seu pais, mas fora, e discutem onde e de que maneira podem aplicar sua capacidade produtiva, em virtude da qual, sem dúvida, a cidade terá abundância de ouro e prata, uma vez que seus habitantes ganharão dinheiro não apenas com os negócios que podem fazer em seu país, mas ainda com os que podem fazer em países alheios”.
3) “Um grande comércio será uma das causas de abundância de dinheiro num país quando ele é praticado com mercadorias de outros países, mais do que com os produtos deste mesmo país, visto que a exportação dos produtos locais (de Nápoles) excedentes não pode ser grande. E, por outro lado, o comércio dos bens que um país importa por necessidade fará com que ele tenha menos e não mais dinheiro, de maneira que se pode concluir que um grande comércio num país surtirá o efeito acima mencionado somente com a condição de que se comerciem bens de outros países para outros países e não que o comércio fique limitado às suas próprias necessidades, pois, neste caso, surtirá o efeito contrário (efeito de acumular riqueza)”.
4) A última das causas de abundância de dinheiro é a sabedoria de quem governa. É preciso considerar “as causas e condições que podem fazer seu território ter abundância de moedas, saber aplicar várias providências de acordo com os efeitos que quer produzir, removendo os obstáculos que se opõem ao efeito desejado. É muito certo que, quando num reino a sabedoria de quem governa se encontra no grau mais elevado, ela será a causa mais poderosa entre todas para fazê-lo ter abundância de ouro e prata, podendo-se considerar causa eficiente e agente superior as demais”, escreve Serra ao vice-rei espanhol.
Aqui, a sua linguagem não é muito explícita, uma vez que Antonio Serra escreveu estes textos na prisão de Vicaria e, talvez, temesse por sua integridade física enquanto buscava a sua liberdade junto ao rei. A realidade, que fica nas entrelinhas, é que a população de Nápoles se queixava dos estrangeiros que controlavam a economia com apoio do Reino.
O “Breve Tratado”, da editora curitibana Segest, é um livre inédito no Brasil e no exterior. Essa edição em português foi a partir de uma reprodução anastática da edição original de 1613 e das edições posteriores de 1803.