A conquista do oeste na pena do senador Pedro Simon

Todo estado no Brasil tem um CTG e algum comércio "Do Gaúcho". O espalhamento da gente sulista por todo o território nacional, denominado "diáspora" pelo autor, é a saga do povo do extremo sul brasileiro. História contada pelo conhecido Pedro Simon, um dos mais importantes políticos rio-grandenses

Pedro Simon, ex-senador e ex-governador do Rio Grande do Sul - Foto: Orlando Brito

“A Diáspora do Povo Gaúcho” é o título do livro do ex-senador Pedro Simon, relatando um dos dois grandes movimentos populacionais do País no século XX e que mudaram a fisionomia étnica, econômica e política da Nação. Segundo o escritor, cerca de 1,2 milhão de rio-grandenses vivem fora de sua terra natal, ou seja, mais de 10% da população total do estado. Não é pouco.

Segundo o autor, o Rio Grande do Sul foi a unidade da federação que perdeu mais gente. Este livro conta a história e o destino dessa massa humana que se movimentou na segunda metade do século XX e dos efeitos dessa migração na vida brasileira.

Simon escreve recuperando sua atuação nos plenários e nos executivos em que atuou, como ministro, governador do Rio Grande do Sul, senador, deputado federal, deputado estadual e vereador em sua cidade natal, Caxias do Sul, que, por sinal, é uma das principais bases de lamento dos migrantes que saíram Brasil afora. Simon conta apenas o milhão e pouco de egressos do Rio Grande do Sul ao povo oriundo das sucessivas gerações de descendentes dos migrantes que levaram consigo a cultura dos pampas e, por isto, são chamados de “gaúchos” e não são diferenciados se vêm do Rio Grande do Sul, do oeste de Santa Catarina, Paraná ou do Mato Grosso do Sul, para onde os rio-grandenses se mudam desde o início dos anos 1930. Esta é a história e a informação detalhada do legendário senador brasileiro.

Cerne do progresso 

Fac-símile do livro de Pedro Simon, um dos mais conhecidos e respeitados político rio-grandenses

Esta é um a história relevante, pois representa uma das duas correntes que mudaram a fisionomia étnica e econômica do Brasil na segunda metade do século XX. A primeira grande mudança se produziu com a imigração de pobres da Europa, Oriente Médio e do Japão, que substituíram a cultura produzida pela mão de obra de origem africana, já altamente miscigenada, do século XIX, e, desde o início do século XX, povoaram as cidades e os campos, imiscuindo-se na mestiçagem brasileira, mas trazendo a ideologia do trabalho dignificante, ao contrário da preguiça das elites coloniais. Macunaíma é a caricatura.

O outro movimento mobiliza as populações do Nordeste e do Sul, estes os hoje chamados “gaúchos”. Dos estados nordestinos saíram as populações que foram, no Sudeste, formar a base da classe operária que gerou o grande salto para a frente da indústria e dos serviços, convertendo essa região num polo mundial de produção de produtos industrializados e de alta tecnologia. São Paulo, Rio e Minas importaram cérebros e profissionais de todo o País, inclusive do Rio Grande do Sul, mas foi a massa de nordestinos com seu ímpeto empreendedor de vencedores que constituíram a base da grande revolução socioeconômica do Sudeste. Suas expressões na economia e na cultura são emblemáticas, mas sempre vale ressaltar um produto dessas diásporas, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva que, antes de ser pernambucano, é um trabalhador com formação técnica, especializado, da indústria automobilística, um ícone do novo Brasil, litorâneo e urbano, de seu tempo.

Enquanto isto, na hinterlândia, silenciosamente, outra diáspora, a dos “gaúchos”, conquistava os espaços vazios legados pelos bandeirantes dos séculos XVI e XVII, também, a seu modo, com sua cultura e espírito empreendedor, criavam a outra metade do novo Brasil. Atualmente, se descartarmos o setor de serviços da economia, veremos que a riqueza nacional vem, metade-metade, desses dois segmentos, agronegócio e indústria, coisa de “gaúchos” e “nordestinos”, ambas massas populacionais originárias em vários estados, mas tratados nos centros litorâneos como se fossem etnias. O que, de fato, parece mesmo que seriam, tal sua homogeneidade e suas contribuições. Simon mergulha numa fatia desse bolo.

A rota dos gaúchos 

Destaca Pedro Simon que a marcha para o norte se deu a partir dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, na primeira fase alcançando Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia, Pará, Amazonas, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Bahia e Maranhão. A partir de 1990 esta migração atingiu o Piauí (também chegou ao Paraguai, Bolívia e norte argentino). Boa parte dessa mobilização se deu durante o regime militar, com a oferta de terras e de garantias dos governos, num processo que seria, tecnicamente, denominado de reforma agrária, pois visava, basicamente, aumentar a produção agrícola em terras improdutivas.

Gaúcho na Amazônia – Foto: Orlando Brito

Assim como os nordestinos iniciaram sua marcha para o sul tolhidos pelas secas, os sulistas subiram para o centro-oeste, inicialmente, deslocados pela expropriação de suas propriedades no noroeste do Rio Grande do Sul, como conta o senador em seu livro: “Ao reler com atenção meus pronunciamentos do começo dos anos 70, vejo que, no Rio Grande do sul, ainda estávamos longe do grande trauma que sofreríamos em 1978, quando milhares de agricultores pobres foram expulsos das reservas indígenas”. E completa: “Muitos desses cidadãos, levados para a Amazônia, não tiveram o respaldo prometido pelo regime militar”, diz, relembrando que esses colonos, hoje estigmatizados como “grileiros” ou invasores de terras públicas, estão novamente ameaçados de expulsão de suas terras, sem títulos de posse ou garantias.

De certa forma, esses colonos repetem na História contemporânea a aventura de seus trisavós, que vieram da Itália, Alemanha, Polônia e outros países europeus, expulsos dos antigos feudos, e agora seus descendentes entram nos desertos da nova fronteira, e ali, como os antigos imigrantes, são abandonados às feras, literalmente, como diz Simon: “O interesse que o presidente Ernesto Geisel – originário de uma família de agricultores com ascendentes alemães – mostrou pela colonização não teve sequência no Governo Figueiredo. E por isto milhares de agricultores gaúchos foram jogados à própria sorte no meio da floresta”.

Explosão de produtividade 

Assim como os nordestinos, com sua rápida adaptação à produção em série tanto nas fábricas como nas construções, segundo as equipes de treinamento das multinacionais, fazendo o País dar um salto tecnológico nos anos 1960/70, os” gaúchos”, nos campos, em poucos anos, convertendo um país importador de alimentos básicos em exportador mundial. Foi uma façanha tecnológica, pois em vez de copiar modelos já testados pelas matrizes, como no caso da indústria, os “gaúchos” tiveram que desbravar os sertões tropicais, desenvolvendo tecnologias inexistentes no mercado até então, já que toda a agropecuária mundial era nos climas subtropicais. Hoje o cerrado colhe mais grãos que os nórdicos nas planícies nevadas do meio oeste norte-americano.

Lavoura de arroz em Bagé, importante cidade gaúcha – Foto: Wenderson Araújo / Trilux

Simon alinha esses resultados. Na Bahia, antes da chegada dos sulistas a produção de soja e arroz, por hectare, que era de 499 kg, logo cresceu para 1481 kg/ha, um incremento de 300%. No estado inteiro, a produtividade baiana cresceu 900% dos anos 70 em diante. Nos demais também houve desempenho igualmente estonteante: Minas Gerais, 870% de crescimento da produção por hectare; Mato Grosso, 740%; Rondônia, 500%; Goiás, 443%; Piauí, 296%.

A produção global, que na safra de 1976/77 era de 47 milhões de toneladas (já com forte participação dos migrantes sulistas), subiu para 122 milhões de toneladas em 2005/6 e, hoje em dia, está chegando aos 300 milhões de toneladas. Nunca na História do mundo houve um fato semelhante. O Brasil é, hoje, um fator de segurança alimentar da humanidade.

Adubo ideológico 

O senador lembra o início da revolução verde, como nos anos 1960 se chamavam os grandes avanços tecnológicos e científicos na área rural. No Rio Grande do Sul, então o maior produtor de alimentos no País, esses projetos foram desenvolvidos nas universidades e na Secretaria da Agricultura.

Foi muito importante o de Mato Grosso com as universidades dos Estados Unidos, financiadas pela Aliança para o Progresso, do presidente John Kennedy, com a participação de cientistas e técnicos norte-americanos treinando acadêmicos e pesquisadores brasileiros. Um dos projetos mais interessantes realizou-se na Faculdade de Agronomia da Universidade do Rio Grande do Sul (ainda não federalizada, como UFRGS), com o emprego de calcário para correção da acidez e consequente abertura da fertilidade do solo. Um dos alunos que participou desses experimentos foi o estudante da cidade de Não-Me-Toque, Gilberto Goellner, que depois veio a ser senador (DEM/MT) entre 2005 a 2013 de Mato Grosso.

Senador Gilberto Goellner – Foto: Geraldo Magela / Agência Senado

Simon recorda o relato de Goellner, ele próprio um migrante, do impasse sobre o uso de calcário e fertilizantes, que dividiu a academia, devido à participação no projeto, de cientistas e professores norte-americanos. O adubo entrou na Guerra Fria. Conta o senador: “Em 1967, quando estudava agronomia na URGS, ele assistiu aos primeiros testes com o uso de calcário em plantações de soja, executados por professores norte-americanos, que vinham para cá mediante convênios.

Diante do uso do calcário, havia dois grupos antagônicos de estudantes. Os estudantes de esquerda, porque não gostavam de americanos, eram contra o uso de calcário. O hoje senador Gilberto, como conhecia os resultados da pesquisa, era a favor. “Ele já havia trabalhado com soja na Cotrijal (Cooperativa de Não-Me-Toque)”, escreveu o autor. Talvez aí tenha nascido uma corrente de negacionistas, que até hoje contestam e combatem o emprego de insumos nas lavouras, principalmente de fertilizantes e defensivos, que esses adversários passaram a chamar de “agrotóxicos”, denominação usada exclusivamente no Brasil (no resto do mundo são “defensivos”) para esses produtos.

Semana Farroupilha 

Pedro Simon passa um pente fino na chamada diáspora dos gaúchos. Além de um mergulho no processo de mudança das populações rio-grandenses e oriundss, o senador recupera uma série de pronunciamentos que fez nesse sentido, nas tribunas dos parlamentos a que pertenceu.

Pintura das tradições campeiras nos centros de tradições gaúchas (RS)

É notável a influência dos “gaúchos” em todo o território que passaram a ocupar. Levaram seu sistema de trabalho, seus conhecimentos e sua civilização. Os CTGs, Centros de Tradições Gaúchas, são entidades comuns a todos os estados brasileiros atualmente. Também o cooperativismo, a forma de organização econômica dos rio-grandenses, foi um fator fundamental para a colonização e para o desenvolvimento da economia nessas regiões. É uma nova cultura que chegou com os migrantes e que permanece, espalhando-se para outros segmentos.

Um exemplo da receptividade das populações locais aos novos habitantes pode ser resumido na decisão do estado de Mato Grosso, que oficializou a Semana Farroupilha, data cívica dos gaúchos, que comemora os feitos da Guerra dos Farrapos (1835/45), no mês de setembro, incluída no calendário das festividades daquele estado.

A presença dos gaúchos nas suas comunidades de adoção são positivas em vários aspectos, como no cultural, no econômico, no social e até no político, tantos são os migrantes que ocupam cargos importantes nas administrações e na vida politica de seus estados de adoção. “A Diáspora” é um livro fundamental para quem quiser desvendar esse lado desconhecido da vida brasileira. Embora o sucesso do agronegócio seja um elemento de orgulho nacional, o lado humano desse empreendimento é ignorado. Simon mostra quem são e onde estão esses heróis da produção, que ele compara aos pioneiros da fundação e da conquista do território brasileiro, denominando-os de bandeirantes do século XX.

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