Uma data tão importante para a República brasileira passou desapercebida nessa terça-feira, 4 de outubro, na Câmara dos Deputados, que foi palco há 33 anos da laboriosa construção da Constituição de 1988. Um ou dois parlamentares fizeram pálida referência a momento e personagem tão relevantes. No Salão Verde do Congresso, jaz a estátua solitária do grande artíficie da “Carta Cidadã”, Doutor Ulysses Guimarães.
A Assembleia Nacional Constituinte era anseio ainda no governo Geisel, quando da abertura democrática. Em 1971, em Recife, Jarbas Vasconcelos, Chico Pinto, Fernando Lyra e Alencar Furtado falaram da necessidade de uma nova Constituição. Em 1986, o Brasil foi às ruas para eleger deputados e senadores que viriam elaborar a nova Carta do País, a que soterrava a então vigente, de 1967, editada pelo marechal Costa e Silva, presidente do regime militar que governou o País de 1964 a 1985.
Tancredo Neves foi escolhido pelo Colégio Eleitoral para o lugar do general João Figueiredo no Planalto, em janeiro de 1985. Em seu discurso de vencedor contra Paulo Maluf, falou da necessidade do debate constitucional. Doutor Tancredo faleceu antes de assumir. José Sarney, seu vice, o substituiu e manteve o compromisso de convocar a Constituinte.
Desembarcaram em Brasília vários temas que pipocavam nas ruas exigindo atualização dos novos tempos. Nomes importantes, de inúmeros setores da sociedade chegaram ao Congresso. De todas as classes e ideologias, gêneros e idades. No Senado, estavam, por exemplo, Afonso Arinos, Fernando Henrique, Jarbas Passarinho, José Bonifácio, Itamar Franco, Roberto Campos, Marco Maciel, Mário Covas. Na Câmara, ao contrário de não haver nenhuma senadora, 25 deputadas. Entre elas, Benedita da Silva, Rita Camata, Márcia Kubitschek, Tutu Quadros, filhas do ex-presidentes Juscelino e Jânio. Jovens e antigos nomes da sociedade, juristas, economistas, ricos e pobres. Todos presididos por Ulysses Guimarães.
Durante os anos de 1987 e 1988 os parlamentares se debruçaram sobre os mais variados temas que afligiam a Nação. Aos montes, chegavam as emendas populares levadas pelos setores de classe: sindicatos, funcionários, empresários, minorias, empregados e patrões, indígenas, professores, negros, artistas etc. Comissões mistas foram estabelecidas para organizar as propostas e, depois, votá-las no plenário. O senador Bernardo Cabral, do Amazonas, e o deputado Nelson Jobim, do Rio Grande do Sul, deram redação final ao texto.
Hoje está aí a Constituição que temos, elaborada para acolher toda sociedade, garantir os direitos democráticos, defender os direitos dos cidadãos e estabalecer a independência dos três poderes da República. Temos visto ultimamente as ameaças de JairBolsonaro ameaçar rompê-la.
O certo é que o 4 de Outubro, data tão importante para a democracia, bem que podia merecer melhor tratamento pelo Legislativo. Mas não. Aliás, nesse ano, parlamentares cuidaram mais de si próprios, de projetos voltados para o seus interesses pessoais, seu bem-estar, seus bolsos. Muito pouco para os cidadãos, para o eleitor. Nem mesmo o cara que atualmente preside a Câmara e tem o assento outrora de Doutor Ulysses Guimarães, fez justiça ao aniversário da Constituição.
Devia ser obrigado por lei todos os parlamentares lerem o histórico discurso de Ulysses Guimarães ao promulgar a Constituição de 1988, “A Carta Cidadã”, como ele mesmo a classificou. Estão abaixo as palavras do Senhor Diretas:
“Senhoras e senhores constituintes.
Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.
Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.
Foi a audácia inovadora, a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência e a inépcia.
Soma-se a nossa atividade ordinária bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador.
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mão de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável. Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada dentro de cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira que cunhou a frase da proeminência da sociedade sobre o Estado: Desobedecer a El Rei para servir El Rei.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.
Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala.
A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja o nosso grito.
Mudar para vencer. Muda Brasil.”